Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A OBRA DE ARTE NA ERA DA INCOMUNICABILIDADE TÉTRICA

O título deste post faz pastiche de um dos textos mais importantes do século XX, escrito pelo alemão Walter Benjamin: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. O texto de Benjamin tornou-se uma das grandes referências para pensar a obra de arte não mais como exemplar único, mas como produto copiável e, por este motivo, banalizável - sem dúvida, a marca de nossa era pós-industrial. A famosa "aura" que La Gioconda ou A última ceia têm, por seu caráter de peça única, são problematizados com a disseminação da gravura (antes, a prensa já antecipara essa possibilidade de produzir quantos volumes se quisesse de um mesmo livro), do cinema e, ainda mais em nossos dias, da facilidade de digitalização e transmissão dessa imagem ou conteúdo de forma infinita. 
O nada menos que genial cineasta austríaco Michael Haneke começou a dirigir filmes para a televisão austríaca na década de 1970, mas estreou no cinema de fato apenas em 1989. Desde então, produziu pouco mais de dez filmes para a telona, sempre se superando e fascinando com sua tão particular maneira de lidar com o tempo e com o espaço ficcionais. Pois bem, Michael Haneke produziu uma Trilogia da Incomunicabilidade, composta por seus três primeiros longas para cinema: O sétimo continente (1989), O vídeo de Benny (1992) e 71 fragmentos de uma cronologia do acaso (1994).
 
O sétimo continente faz uso de um número reduzidíssimo de personagens - praticamente apenas o pai, a mãe e a filha pequena - para contar uma história inspirada em um fato real, lido por Haneke em um jornal nos anos 1980. O cineasta, também autor do roteiro, imagina o que teria levado uma família a cometer suicídio em sua casa, não sem antes destruir a golpes de machado e pé-de-cabra e cortes de tesoura, toda a mobília e quaisquer outros objetos que possuíam, restando apenas uma TV. Essa misteriosa motivação suicida é apresentada de forma brilhante no filme, através da crescente mecanização das vidas dessas personagens, e do fracasso na manutenção da rotina cotidiana, que vai se imiscuindo aos poucos. Por exemplo: os dez primeiros minutos do filme mostram a rotina do acordar de manhã dessa família, porém sem mostrar os rostos das personagens. Os enquadramentos estáticos privilegiam a ação sem destacar os agentes, o que provoca inesperadas associações no espectador. A destruição selvagem de todos os bens de consumo da família é perturbadora, e o filme nos deixa boquiabertos com a violência latente que cada um de nós tem dentro de si, na luta por agir civilizadamente.
 
O vídeo de Benny tem como protagonista o Benny do título, de cerca da 15 anos de idade, um jovem fascinado pelas possibilidades do registro de imagens através de uma câmera. Quando comete um assassinato, que é devidamente registrado por sua câmera, e cuja motivação havia sido apenas o "saber como é" matar alguém, seus pais se veem envolvidos e dispostos a qualquer coisa para encobrir o crime do filho adolescente. Para isso, retrocedem em sua civilidade, passando por cima da culpa e de um comportamento razoável para quem vive em comunidade.
 
71 fragmentos de uma cronologia do acaso tem Juliette Binoche como uma das atrizes, e se constitui em um daqueles filmes-mosaico, que outros cineastas tão bem construíram, como Robert Altman (O jogador, Short cuts), e Alejandro Gonzalez Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas). Acompanhando a vida de algumas personagens que se cruzam em um evento comum que os une por um breve momento (uma explosão de violência que não vou detalhar para não tirar a surpresa de quem ainda não viu o filme), o filme é, a exemplo dos outros dois anteriormente citados, uma angustiante narrativa que traz como principal mote as dificuldades do ser humano contemporâneo de viver em uma sociedade constantemente esvaziada de sentido pelo acúmulo de consumo(s). A tal da incomunicabilidade é uma palavra prêt-à-porter, ou seja, é usada indiscrimidamente, na falta de palavras mais precisas, para explicar essa febre que queima o Homem contemporâneo. A trilogia de Haneke é exemplar para mostrar que o cinema pode socar fundo nossos estômagos, coisa que o cineasta faria cada vez melhor com os seus filmes seguintes, como Caché, A professora de piano, Código desconhecidoFunny games- Violência gratuita, A fita branca e Amor
 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Fassbinder- O pior tirano é o amor

Rainer Werner Fassbinder foi homem de teatro e de cinema - muito mais de cinema, dado o legado fílmico remanescente de sua curta vida (1945-1982), composto de algumas dezenas de produções. O novo espetáculo do Coletivo Confúcios e Confusos elegeu essa contraditória e arrebatada figura como tema de seu novo espetáculo, Fassbinder- O pior tirano é o amor, que já indica, desde o título, um flerte com o melodrama e com a literatura pulp. Tal inclinação é coerente tanto com a vida de Fassbinder, que, como se diz, "daria um livro", tal o número de situações com potencial dramático que viveu; e, além disso, coerente com a dramaturgia de Diones Camargo, que se encarregou do texto do espetáculo. Diones vem de algumas experiências em que esteve em primeiro plano o lado melô da vida, seja em Os plagiários (que trabalhava sobre a vida de Nelson Rodrigues), seja em Hotel Fuck (que trabalhava especificamente sobre a literatura pulp e o cinema seu herdeiro). Nesses dois últimos citados, percebia-se o gosto de Diones pela frase feita, pela tirada de efeito, pela construção algo artificial dos diálogos, criados para causar uma nostalgia de algo já lido/ouvido em alguma sessão de Corujão na TV ou brochura de papel amarelado. Aqui, em Fassbinder, trabalhando sob as orientações do diretor Clóvis Massa, que lhe encomendou o texto da peça, há uma amenização no tom satírico, mas é inegável que o estilo do dramaturgo está lá. A multiplicidade de personagens e a superposição de planos narrativos permanece como estratégia da construção textual, com a vantagem, desta vez, de uma maior clareza na passagem de planos. Poderia ser dito que há menos experimentação e mais objetivação na tarefa.
A encenação procura incorporar elementos da linguagem cinematográfica, sem que se restrinja a simples projeções de imagens, embora elas aconteçam em alguns momentos. Há, por exemplo, o recurso ao enquadramento das figuras em substitutos de quadros fílmicos: a cenografia de Rodrigo Shalako, composta de painéis móveis que simulam paredes e aberturas de porta e janelas, recorta os corpos dos atores em planos americanos, ou planos detalhe. Há, também, uma espécie de fusão de imagens, efeito alcançado quando sobrepõem-se, em um mesmo espaço da cena, dois diferentes planos narrativos, como por exemplo, na cena em que as personagens do filme As lágrimas amargas de Petra von Kant rompem sua relação simultaneamente ao rompimento "real" de Fassbinder com um de seus amantes, com um resultado bastante teatral e bem executado.
Aparentemente há uma intenção de emular procedimentos brechtianos, a partir do uso das canções que aparecem de quando em quando no decorrer da encenação. Essa intenção é até mesmo verbalizada por uma das personagens, em dado momento da peça, bastante en passant, quando diz algo como "interrompemos a peça e cantamos, de um jeito brechtiano". Não pode ser dito o mesmo sobre as famosas projeções de títulos que Brecht apresentava aos seus espectadores, que tinham uma função de antecipar os acontecimentos que se seguiriam. Na peça dirigida por Clóvis, os títulos dos atos (três) e alguns textos colocados entre aspas (que, suponho, sejam de Fassbinder) têm uma função mais poética que desdramatizante. Também não é possível atribuir uma função distanciadora para o repartimento da personagem R. W. Fassbinder entre três diferentes atores. Essa escolha deve-se muito mais a uma lógica de passagem do tempo (realista) ou a uma questão de economia de produção do que uma tentativa de estranhamento. Estranho, no sentido brechtiano, seria uma das atrizes atuar como Fassbinder.
O elenco é versátil e bem preparado para transitar entre as diferentes figuras. Luciano Pieper, Frederico Vittola e Marcos Contreras vivem três fases distintas de Fassbinder com uma curiosa estratégia: à medida que a personagem envelhece, ela cresce em estatura e ganha pelos no rosto. Assim, Luciano, o mais baixo dos três atores, aparece de rosto barbeado, Frederico, o intermediário, com um bigode, e Marcos, o mais alto, com barba inteira. Não saberia dizer se essa metáfora foi intencionalmente construída, em direção ao crescente reconhecimento de Fassbinder como artista superior. Mesmo assim, e Clóvis Massa como estudioso da teoria da recepção bem o sabe, é incontrolável o que o espectador lê em um espetáculo que lhe é apresentado. Portanto...
Rodrigo Shalako, Viviana Schames, Renata de Lélis e Martina Fröhlich completam o elenco em atuações convincentes e bem dirigidas. Martina, especialmente, em função de seu preparo para o canto, se destaca positivamente, encontrando, em minha opinião, o melhor exemplo do que eu esperaria de uma atuação "germânica" e quase brechtiana. Deve ainda ser mencionado o excelente trabalho de Antônio Rabadan na criação das dezenas de peças do figurino, auxiliado por Kethyene Sperhacke.
Registro ainda, em 2014, um fato que me chama a atenção, e que é bem vindo: o número de espetáculos, em Porto Alegre, que trazem como centro narrativo das encenações os relacionamentos homossexuais. Tivemos Anjo da guarda, de Paulo Guerra, depois, Os homens do triângulo rosa, da Cia. Teatro ao Quadrado, e agora, Fassbinder- O pior tirano é o amor. Os três espetáculos fogem do viés cômico que seguidamente se vê nos palcos - que é bem vindo e tem o seu espaço, ressalte-se. Mas assistir a espetáculos que tragam personagens homossexuais construídos densamente e com respeito é um mérito da nossa produção local.

domingo, 23 de novembro de 2014

Um dia assassinaram minha memória


Adriana Cavarero, em seu excelente livro Vozes plurais- Filosofia da expressão vocal, reconstitui um acontecimento importantíssimo para a História não apenas da arte, mas para a História da civilização, e que ela chama de desvocalização do logos. Trocando em miúdos, e sintetizando barbaramente a ideia da autora, tão bem desenvolvida em sua escrita, essa desvocalização do logos foi a irremediável e irreversível troca (ou abandono, melhor dizendo) da expressão vocal como unicidade, ou seja, a ideia de que cada ser nascido sob o sol tem uma voz única, que a exemplo de uma impressão digital, é inimitável e irrepetível. Cada voz é um universo. Pois bem, ao diminuir a importância da voz como expressão e transmissão de conhecimento - valorizando, em substituição, a palavra escrita -, a Humanidade perdeu algo precioso, e que apenas o som produzido pela carne, pelas entranhas do Homem, é capaz de dar. A palavra escrita, seja sobre a plataforma que for, seja sob o alfabeto que for, é sempre uma transcriação; é signo, não significado. A palavra escrita tem sentido, sim, mas não o significado que o som vocal possibilitaria. 
Toda essa divagação me ocorre após ter assistido Um dia assassinaram minha memória, espetáculo teatral dirigido por Decio Antunes e Carlota Albuquerque. Não que a voz tenha uma importância tão fundamental no espetáculo, apesar de que as palavras pronunciadas pelas "intérpretes-colaboradoras" sejam afiadas e carregadas de sentidos que se conjugam perfeitamente com a ambientação cênica, uma casa meio vazia, meio abandonada, criada ficcionalmente no espaço do Museu Júlio de Castilhos. O que me fez elucubrar foi, em um primeiro momento, as sonoridades que invadem os ouvidos dos espectadores, criadas por Ricardo Pavão. A importância do som está diretamente ligada à ausência dele, e a alternância entre ambos enriquece a experiência. Em Um dia assassinaram minha memória, os espectadores são colocados em contato com o que de mais invasivo pode haver: o som que entra pelos nossos ouvidos, ao qual não podemos resistir, não podemos negar, não podemos ignorar. O videocentrismo, que substituiu a escuta no mundo moderno como forma de absorção do mundo, pode ser boicotado: basta virar o rosto a uma visão que nos enoja, ou fechar os olhos para o que nos assusta. O som nos invade sem clemência, nos agride. A imagem permanece no espaço, aloja-se na retina e lá permanece, a não ser que cortemos o contato fechando as pálpebras. Um cão atropelado à beira da estrada está lá, e lá ficará, até que alguém o recolha, ou que o tempo aja sobre ele; semanas, meses se passarão, enquanto a transformação lenta se efetua. O som do cão atropelado, o ganido surpreso e dolorido é único e fugaz: dura apenas um segundo, existe apenas no tempo. A imagem que dura no espaço, e o som que dura no tempo, são os elementos que formam a memória. A memória que impregna um museu, por exemplo (memória no espaço, diga-se de passagem, já que nesse tipo de museu expõem-se objetos, imóveis, isolados de seus contextos originais, mortos, de alguma forma). O som não é um elemento corriqueiro em um museu. O som do silêncio, sim.
Imagens e sons compõem o belo espetáculo da Jogo de Cena Companhia Teatral. Tudo é belo: figurinos, iluminação, ambientação cenográfica, atrizes. Tudo é carregado de obsessões. Fantasmas da memória, mulheres de várias idades têm fragmentos de suas vidas apresentadas, sem que, no entanto, se construa uma lógica aristotélica na narrativa. Como é praxe no teatro pós-dramático, o sentido se dá pelo acúmulo de signos, de sensações, atmosferas, imagens, sons. Identifica-se, por vezes, algumas figuras da dramaturgia universal, como a Mãe Coragem de Brecht, ou a Clitemnestra do mito grego, porém descontextualizadas e picotadas. De resto, é como se não estivéssemos ali, fôssemos testemunhas desses fantasmas, ainda que, em algumas ocasiões, esses fantasmas busquem interação conosco, os espectadores.
Um resultado rigoroso, que reforça a linha estilística de Decio Antunes como encenador, em que algumas de suas obsessões retornam mais uma vez à cena: as mulheres, a memória, o trágico, a dança-teatro. Desta vez, o resultado é bastante superior a Corte, de 2009, que constituiu a primeira parte da trilogia da qual Um dia assassinaram minha memória é o segundo momento. Lembrei-me de A casa, um belíssimo espetáculo dirigido por Decio, que guarda algumas semelhanças com este seu mais recente trabalho.
As mulheres que compõem esse mostruário fantasmático são intensas, inteiras, interiorizadas: Naiara Harry, Lurdes Eloy, Angela Spiazzi, Kaya Rodrigues e Renata Stein vagam pelos corredores, entram e saem de cômodos, mostram-se e escondem-se em recônditos que alternam luz e escuridão. Atuações delicadas, quase sempre contidas, invariavelmente repletas de verdade. Não foi possível, ao final da sessão que assisti, cumprimentar a equipe, vários dos quais com quem já trabalhei (Naiara, Lurdes, Angela, Decio e Carlota), pois uma nova sessão começaria em poucos minutos. Deixo, no entanto, meu abraço a todos pelo espetáculo tão especial. Parabéns!

sábado, 22 de novembro de 2014

OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA: crítica de Fabio Prikladnicki

 
Pedro Delgado (como Tio Freddie) e Marcelo Ádams (como Max) integram o elenco da produção          
Foto: Luciane Pires Ferreira / Divulgação
 

Opinião: Peça "Os Homens do Triângulo Rosa" resgata potencial transgressor do amor

Espetáculo da Cia. Teatro ao Quadrado aborda perseguição nazista aos homossexuais

Por Fabio Prikladnicki (Jornal Zero Hora/Clic RBS)
 
Conhecida no cenário gaúcho por espetáculos com textos modernos que se valem de um humor sarcástico e também por suas montagens de Molière, a Cia. Teatro ao Quadrado dá um passo adiante com a peça Os Homens do Triângulo Rosa, que estreou no Theatro São Pedro e depois cumpriu temporada no Teatro Renascença, em Porto Alegre. Desta vez, trata-se de um espetáculo seriíssimo, abordando a perseguição aos homossexuais na Alemanha nazista.
O tema é pertinente por dois motivos. Um deles é o pouco conhecimento que se tem, ainda hoje, sobre este episódio histórico. O segundo é que os homossexuais são, atualmente, alvo de violência sistemática nas ruas do Brasil, como salientou a diretora Margarida Peixoto antes da sessão a que assisti no Teatro Renascença. Assim, esse teatro político no melhor sentido – belo e transformador – faz bem a Porto Alegre.
Max (Marcelo Ádams) mora com o bailarino Rudy (Gustavo Susin), mas ambos têm de fugir de Berlim quando o cerco nazista aperta. Em meio a suas desventuras, Max vai parar no campo de Dachau, onde encontra um novo amor, Horst (Frederico Vasques). Antes de chegar ao campo, Max convence os soldados de que é judeu – a um custo doloroso – e ganha um uniforme com a estrela de Davi amarela. Assim, consegue ser mais bem tratado do que Horst e os outros homossexuais do campo, que levam o triângulo rosa.
Cabe destacar as atuações de Marcelo Ádams e Gustavo Susin. O primeiro acerta o tom especialmente nos momentos de maior intensidade, em um desempenho mais nuançado do que demonstrou recentemente em A Vertigem dos Animais Antes do Abate, também exibida neste ano. E cresce na segunda parte. Susin revela-se um ator particularmente versátil, capaz de incorporar, a cada novo espetáculo, papéis bastante distintos entre si. Seu Rudy é delicado e adorável. Frederico Vasques fica um pouco atrás como Horst, protagonista ao lado de Max e personagem exigente em força de expressão. Em tudo, aparece o trabalho seguro da direção de Margarida.
É impossível não se emocionar com o trecho em que Max e Horst fazem amor sem se tocar em um curtíssimo intervalo no trabalho forçado no campo. Valendo-se apenas da fala, eles redescobrem o potencial transgressor do amor erótico. Interpretada de forma extremamente sensível e respeitosa por Ádams e Vasques, a cena é uma das mais memoráveis já apresentadas nos palcos porto-alegrenses nos últimos tempos.
Uma nota deve ser feita sobre o texto da peça. O programa do espetáculo entregue aos espectadores informa que a dramaturgia foi "adaptada" de três fontes: Bent (1979), peça de Martin Sherman (levada ao cinema, com o mesmo título, em 1997), e os livros Triângulo Rosa – Um Homossexual no Campo de Concentração Nazista, de Rudolf Brazda e Jean-Luc Schwab; e Eu, Pierre Seel, Deportado Homossexual, de Pierre Seel.
Trata-se, no entanto, de uma montagem de Bent, do início ao fim, com pequenos acréscimos. Há uma intervenção maior no papel de Greta, a travesti amiga de Max, que canta Streets of Berlin no início da peça original e do filme. Em Os Homens do Triângulo Rosa, Greta (representada com graça e vigor por Gisela Habeyche) pontua todo o espetáculo com canções de Kurt Weill em letras recriadas por Marcelo Ádams e acompanhamento da ótima pianista Elda Pires, que também executa passagens instrumentais. O recurso de estender a presença de Greta até o fim torna-se complicado porque, em pouco tempo, ela perde sua função dramatúrgica. Sua figura misteriosa e extravagante combina mais com a festa da vida em Berlim antes da perseguição nazista, na primeira parte, e menos com a tragédia crescente do meio para o final.
A Cia. Teatro ao Quadrado se reinventa com um tipo de trabalho cada vez mais necessário na cena gaúcha: construído, acima de tudo, a partir de uma ideia clara. Fica demonstrado que o grupo tinha um projeto sólido em mente, que soube traduzir em uma cena estimulante e – artigo raro no mercado – socialmente relevante.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Sobre uma montagem necessária, útil e imperdível: Os homens do triângulo rosa

O texto que se segue foi escrito por Igor Simões, que é ator, professor de História, Teoria e Crítica da Arte na Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul), e Doutorando em História, Teoria e Crítica da Arte na UFRGS. Após assistir Os homens do triângulo rosa, ele nos brindou com seu lindo texto e com uma aguçada mirada sobre nosso espetáculo:
 
"Sobre uma montagem necessária, útil e imperdível: 
Os homens do triângulo rosa
 
Os tempos lá fora andam sombrios. Pessoas defendem aquilo que afeta a existência do outro. Tempos assim evocam sombras. Tempos assim evocam medo. Mas há um lugar. Um lugar desvalorizado, por vezes. Criticado, reconstruído, morto, reaparecido. Estou falando da história. A história como um lugar que montamos em nossas vidas a partir de nossas crenças. O historiador, afinal, é um de nós. O teatro sempre foi o espaço profano da história. Apreende-a sem ceder aos seus caprichos. Há a história, há a estória - sua natureza mais própria - e há o teatro. Em alguns momentos, o teatro pode servir como dispositivo. Dispositivo da história para olhar não para aquele lugar distante e empoeirado mas para os dias que nos envolvem, e algumas vezes, engolfam. O espetáculo Os homens do triângulo rosa, da Cia. Teatro ao Quadrado é um desses momentos em que cotidiano, história e arte se encontram e promovem mergulhos no íntimo e no coletivo. No personagem do ator Marcelo Ádams moram concomitantemente o passado da perseguição nazista e o contemporâneo de um Brasil (e de um mundo) que faz vistas grossas ao amor entre pessoas do mesmo sexo e que inacreditavelmente levanta, a cada mudança de calendário, mais bandeiras que apontam para a discriminação, para o gueto, para o ouvido surdo ao mundo que vem daquilo que me faz diferente do outro e que, assim, na diferença, me faz humano. Mas não só. Os dias recentes têm tornado invisíveis a potência do outro em ser aquilo que ele é: outro. As urnas reveladas nos últimos pleitos revelaram isso ao se verificar a enorme quantidade de votos de homens e mulheres que defendem a supressão do outro. O outro em tudo que ele tem de aventura e desdém, fascínio e distanciamento. O trabalho da Cia. Teatro ao Quadrado é uma golfada de ar, amor, generosidade e cuidado para com aquilo que nos faz mais gente. Para o amor e seus desvãos, para intolerância e sua incapacidade de conter a represa do que é vivo. A iluminação cria atmosfera que abraça toda ação. A cantora do cabaré pré-perseguição reunida ao piano desafiam o correto sem traí-lo e optam por rasgar os conflitos e lembrar- nos de que tudo é representação. Este tudo a que me refiro inclui a guerra e as disputas em toda sua selvageria e humanidade. O conjunto de atores é de um equilíbrio raro. Cada um deles está em cena inteiro, defendendo uma história difícil de ser contada pelas dificuldades dramatúrgicas que impõe. Manter atento um público que durante muitos minutos se vê diante de dois volumes feitos de pedra e cinza simetricamente colocados criando uma limitação intencional à representação enquanto dois atores se movem entre eles exige corpo, presença, voz em ato de vida. Nada disso falta, por vezes, sobra. A direção de Margarida Peixoto acerta ao mergulhar o público no cascalho cotidiano do campo de concentração e deixar que ele reviva cada segundo do errar cotidianamente sem saída mas em busca de uma liberdade possível. Enquanto isso as sutilezas de cada um dos personagens são operadas com cuidado, delicadeza e atenção e se mostram em inteireza de humanidade e compartilhamento de experiências entre o estar em um determinado contexto histórico, temporal e ainda, aquilo que se pode fazer para que ele não determine sozinho aquilo do que somos feitos. A prisão nazista do espetáculo é uma prisão para a liberdade. Quanto mais encarceradas estão as figuras que se despem diante do público mais se tornam evidentes suas estratégias para serem livres em seu sexo, em seus amores, em seus temores e em sua insistência no resistir. Há espaços de luminosidade plena na encenação. Logo na primeira parte, os personagens gays, de amor livre e distante dos padrões do casamento gay pré-Aids se encontram no amor que ecoa das vozes de Gustavo Susin e Marcelo Ádams ao entoar Somewhere over the rainbow. Hoje a canção pode soar clichê da representação do gay americanizado. Na encenação ela é um último facho de luz em um amor que se sabe ao fim e que encontra ali, em meio a uma selva (ou bosque?) de intolerâncias, o último lugar possível para ser inteiro, genuíno, humano.
Em uma agenda de espetáculos que tende à comédia que atrai público, tocar em temas como este é importante. Mais: é necessário. A cenografia acerta ao preocupar-se mais com atmosfera do que com a funcionalidade. As imagens que se constroem diante dos olhos do público são potentes e completamente dependentes da exatidão dos atores que, capitaneados por Marcelo Ádams, que aqui interpreta o protagonista, se dividem em momentos de inteireza e fé cênica.
Enfim, por este e por muitos outros motivos que ecoam após assistir a montagem de Os  homens do triângulo rosa e que só se tornarão palavras após um tempo necessário, que toda boa arte exige, é indispensável que o público prestigie, assista e perceba o quanto de humano se perdeu ao se escolher o caminho da surdez, da cegueira e da indiferença a tudo aquilo que ao fim e ao cabo, como diz o protagonista 'é só amor (...) por que está errado?'."

terça-feira, 28 de outubro de 2014

OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA: seleta de impressões




Alguns dos comentários que estamos recebendo sobre OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA. Que alegria sentimos quando conseguimos tocar os espectadores com nossa arte! Todas as fotos são de Luciane Pires Ferreira.

Por Valência Losada:
"É muito tocante quando uma encenação atinge com supremacia uma das funções do fazer teatral, o arrebatamento. Assisti agora pouco Os homens do triângulo rosa, montagem do Teatro Ao Quadrado. Saio com a certeza que o teatro precisa, como há muito não carecia, de espetáculos que investiguem, questionem e nos façam refletir acerca da condição humana.
É muito, muito importante que compreendamos o pensamento de Brecht, Hannah Arendt, Foucault, Adorno, Artaud, Heiner Muller e outros tantos que nos fizeram pensar a arte, não como entretenimento, mas na sua força transformadora.
Fico imensamente feliz em saber que há uma montagem deste nível estético, social, histórico sendo feita aqui em Porto Alegre. Fico feliz de alguma forma fazer parte disso.
Obrigada e parabéns, Teatro ao Quadrado!
Somos todos um só."

Por Ana Cláudia Munari:
"Superou qualquer expectativa, em todos os sentidos: texto, elenco, direção, cenografia, não há o que contrapor, é um conjunto de escolhas à perfeição.
Eu acho que esse espetáculo é daquele tipo que faz a gente sair diferente do teatro. Seria maravilhoso se ele percorresse o país inteiro, o mundo inteiro.
NÃO DEIXEM DE ASSISTIR, ELE VOLTA AINDA EM OUTUBRO NO TEATRO RENASCENÇA."

Por Zoravia Bettiol:
"Oi pessoal,
Os Homens do Triângulo Rosa é um espetáculo teatral que deve ser visto por todos. O trabalho do grupo Teatro ao Quadrado está ótimo. A direção segura da Margarida Peixoto que conduz um excelente elenco nos faz refletir sobre questões muito importantes como a liberdade do ser humano, a sua sexualidade, o amor e quando elas são abafadas e aniquiladas pela violência e crueldade. O espetáculo pode ser visto no Teatro Renascença até o dia 16/11. Não percam."

Por Bob Bahlis:
"Ontem fui ver  Os homens do triângulo rosa", em cartaz no Teatro Renascença até o dia 16 de Novembro.  A peça é muito boa, daquelas que vai te pegando de cantinho e faz o tempo passar rápido demais...
É uma grande história de amor, no meio de um campo de concentração.
Mas talvez antes do amor, a história nos mostre a capacidade que nós humanos temos de nos adaptar a qualquer situação, pelo instinto de nos mantermos vivos e... depois...amar.... ou seria ao contrário?
O elenco está arrasando e a direção da Margarida Peixoto é impecável.
Hoje acordei com uma sensação terrível, em pensar na família da minha avó, sobrevivente dos campos de concentração, vivenciaram tudo isso, e que milhares de histórias como essa, da peça, aconteceram.
E fiquei com tantas outras questões que estão circulando na minha mente....
Parabéns ao Teatro Ao Quadrado, pelos 12 anos de trajetória, pela linda história.
Parabéns ao elenco e equipe técnica.
Seus lindos!"


Por Fernanda Petit:
"Ontem assisti Os homens do triângulo rosa, me lembrei de um tempo bonito em que na sala da Terreira da Tribo decidimos assistir em galera o filme BENT. Choramos todos juntos e fomos dormir pensando em tudo aquilo.Anos depois achei o texto e hoje assisto a adaptação deste. Me fez voltar no tempo.
O texto é muito bom e há momentos de extrema beleza. Gosto tanto, mas tanto das músicas (daquelas coisas que eu gostaria de dizer).
O mais bonito de assistir a peça foi ver tantos casais gays na plateia com um sensação de liberdade. Havia casais se fazendo carinho e dando beijo e desculpa, mas raramente eu vejo isso na rua e nos espaços, mesmo quase tendo só amigos gays. Me causou uma surpresa boa.
A peça tem momentos muitos bonitos e extremamente tensa em certos momentos, com ótimo jogo entre os atores. O elenco está afiado e com construção de personagens interessantes e cativantes. O trabalho corporal é primoroso. Me peguei quase chorando em dois momentos, mas segurei a peteca. Sou fã de muita gente ali!
Parabéns a toda equipe, direção e ao grupo por trazer à tona este tema e tocar a gente de alguma forma.
Como disse ontem na janta os silêncios da peça e este estado "parado" mas presente é simplesmente lindo. Como o silêncio diz tanta coisa. Como é bonito ver duas pessoas paradas diante da gente, mas tanta coisa acontecendo.
Vão!"


Por Luciene Barbiero Machado:
"Theatro São Pedro. Os homens do triângulo rosa. Marcelo Ádams protagoniza ao lado de feras como Gisela Habeyche. Espetáculo corajoso e necessário. Direção sublime. Eu e todos que aplaudimos em pé recomendamos. Temporada no Renascença em breve. Fotos do espetáculo de Luciane Pereira."

Por Ana Castro:
"Quanta emoção...primeiro por ter reencontrado meu professor de teatro e amigo Pedro Delgado e o colega Marcelo Adams (excelente...mto orgulhosa). Um texto denso, envolvente, visceral, apaixonante e tão atual, infelizmente. Qualquer forma de amor vale a pena... Por que tanta falta de respeito? Não deixem de conferir "Os homens do triângulo rosa" da Cia Teatro Ao Quadrado. Vocês vão sair do espetáculo mais reflexivos, apaixonados e combativos a qualquer tipo de preconceito, com certeza."

Por San Lopez:
"Um verdadeiro espetáculo, sensível, poético e com interpretações arrebatadoras. Texto inteligente com direção , figurinos e cenografia perfeitas. A emoção e a dramaticidade extrapolam a quarta parede nos deixando ( público) reféns e cúmplices de uma bela história de amor e superação do ser humano. Imperdível!!!"

Por Carlos Cava:
"Prezado Marcelo
Sou um assíduo frequentador de teatro e, principalmente, sempre apoiei e defendi o teatro feito no Rio Grande do Sul que, apesar de todos os esforços da classe artística, não encontra patrocínio e não é referendado pelo grande público.
Peças teatrais vindas de Rio ou São Paulo, muitas vezes com atores gaúchos em seu elenco, costumam ser aplaudidas, ainda mais com artistas globais e, nem sempre, são boas obras.
Assisti ontem (domingo) ao belo... trabalho da Cia. Teatro ao Quadrado e, antes da apresentação, ouvi as belas palavras de Margarida Peixoto que muito me tocou. Seu trabalho como ator não me surpreende, pois tive o prazer de assisti-lo várias vezes e sempre fiquei comovido com sua interpretação. O elenco muito bem afinado e o brilhante acompanhamento musical de Elda Pires criaram uma apresentação sem reparos, maravilhosa.
Congratulo-me com todos e desejo uma ótima temporada e, dependendo de minha "publicidade", farei o que tiver ao meu alcance. Um grande abraço."


Por Márcia Ilha Marques:

"Elenco show, sem exceção! E afinados pela diretora (de quem reconheço as marcas)! Figurinos e maquiagem belíssimos! Cenário "eletrizante"! Trilha sonora tão bonita e tão capaz de levar a reflexão! A sirene impactante! O "carregar pedras" enlouquecedor! O "fazer amor sem entrar-se" (ou talvez entrando mais ainda)!
Desejo vida longa a este trabalho pela importância da temática e pela sensível entrega do elenco ao contar esta história! Parabéns! Em diferentes categorias do Prêmio Márcia Ilha Marques já tenho várias indicações para este trabalho!

E a iluminação? E a iluminação? Show à parte! Seja marcando a troca das cenas, seja o foco no rosto dos atores, nos momentos estratégicos! Achei lindo aquilo!"


Por Helena Pinto:
"Assisti hoje à emocionante peça Os homens do triângulo rosa, criada pelos geniais Teatro Ao Quadrado. Lindíssima a interpretação do queridíssimo Marcelo Ádams. Maravilhosa trilha sonora e com interpretações brilhantes. Ainda que com curta temporada do Teatro São Pedro, os que perderam podem ver esse ESPETÁCULO a partir do dia 24 de outubro no Teatro Renascença."

Por Vera Pinto:
"Parabéns, Cia. Teatro ao Quadrado, pelo excelente trabalho, em Os homens do triângulo rosa, sobre o mais horrendo episódio da história e um preconceito que lamentavelmente, persiste até hoje, contra os homossexuais! Crítico, emocionante, reflexivo, como o teatro deve ser! Excelente texto, grandes atuações, figurino e cenário impecáveis! Os aplausos demorados que o digam!"
 

Por Rick Caldeira:
"Parabéns!
Ri, chorei e me emocionei muito... perfeito apenas!
Aplaudimos em pé neste sábado e foi pouco...MEGA RECOMENDO!
Inesquecível."



Por Renato Del Campão:
"Retornando de Os homens do triângulo rosa no Theatro São Pedro. Um soco no estômago e pertinente a cena contemporânea. Bravo Teatro Ao Quadrado!"


Por Mario Leão:
"Obrigado pessoal do Teatro Ao Quadrado pela espetacular peça de Teatro. Ainda comovido com o trabalho de vocês. E na esperança que o Ódio nunca vença no Brasil ou em qualquer lugar da Terra. Recomendo a peça Os homens do triângulo rosa pra todos os amigos e colegas."

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

100.000 VEZES VISTO

Comecei a escreveu meu blog em 2009, bastante despretensiosamente, considerando esta ferramenta virtual como mais uma possibilidade de falar das coisas que me interessam, divulgar meus trabalhos, etc. Agora, cinco anos depois, chegamos às cem mil visualizações das mais de 600 postagens que aqui estão. Que bom saber que há pessoas que o leem, e se interessam em saber um pouco mais sobre teatro, cinema, literatura...
Obrigado aos leitores, e que continuem visitando!

sábado, 25 de outubro de 2014

OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA: crítica de Antônio Hohlfeldt

 
O crítico teatral Antônio Hohlfeldt, que escreve semanalmente para o Jornal do Comércio de Porto Alegre, assistiu Os homens do triângulo rosa e publicou sua crítica no dia 24/10/2014:
 
O melhor do ano, inequivocamente
 
"O palco do Theatro São Pedro viveu um fim de semana excepcional, quando ali foi apresentada a peça Os homens do triângulo rosa, criação dramatúrgica dirigida por Margarida Peixoto, a partir dos textos Bent, de Martin Sherman, Triângulo rosa: um homossexual no campo de concentração nazista, de Rudolf Brazda e Jean-Luc Schwab, e Eu, Pierre Seel, deportado homossexual, de Pierre Seel. Não tenho dúvida em afirmar que se trata do espetáculo mais importante da temporada, o melhor trabalho a que assistimos, dentre todas as produções de Porto Alegre que cumpriram ou cumprirão temporada entre nós neste ano. Um trabalho exemplar e inesquecível, de Margarida Peixoto, corajoso e fundamental. Ainda que o assunto central alegadamente seja a questão do modo pelo qual os nazistas trataram os homossexuais nos campos de concentração, na verdade, o tema principal é a maneira pela qual o amor pode surgir, afirmar-se e vencer, entre duas pessoas, mesmo nas piores circunstâncias de vida. Esta é a grande e emocionante lição, e por isso Os homens do triângulo rosa merece um lugar muito especial na relação de espetáculos a que tenho assistido ao longo dos anos. A ficha técnica menciona três textos, mas confesso que senti basicamente dois, aquele anterior ao campo de concentração, em que impera a descoberta do medo e a necessidade do esconder-se e, depois, aquele da sobrevivência no campo, quando a vitória do amor se sobrepõe a tudo o mais.
O trabalho de Margarida Peixoto não se afirma apenas pela escolha dos textos e do tema, mas também pelas soluções cênicas encontradas. Por exemplo, a sequência em que os dois personagens descobrem que, pela força e o efeito de suas palavras, podem vencer a extrema vigilância que paira sobre eles e se relacionarem amorosamente, é antológica e inesquecível. Mais que isso, ecoa na sequência final, após a morte de um deles, quando o outro assume sua identidade e sua parte na grande tragicomédia que então se desenrolava na Europa e em seus campos de concentração, com que o espetáculo se encerra.
Com duas horas de duração, que poderiam ser muito pesadas, diante do tema escolhido, ao contrário, o espectador, em que pese sinta-se oprimido pelo que assiste, segue com absoluto interesse e suspense o que ocorre no palco, de tal sorte que o espetáculo se desenrola sem perda de qualquer minuto de atenção. Contribui para isso a opressora cenarização de Yara Balboni, os figurinos de Antonio Rabadan, a trilha sonora de Marcelo Ádams, que desenvolveu novas letras sobre composições de Kurt Weill e inclusive sobre o hino nacional alemão, em outro momento verdadeiramente dramático da encenação. Destaque-se ainda a correta preparação corporal de Angela Spiazzi (que permite os atores transportarem tantas pedras em cena, e manterem-se, ainda assim, em pé, ao longo dos chamados três minutos de descanso), e mais a preparação vocal, a cargo de Ligia Motta (a atriz Gisela Habeyche) e a dos demais atores, de Marlene Goidanich. Destaque-se, ainda, na segunda parte, a humilde, mas decisiva interferência da pianista Elda Pires, que define todo o ritmo deste segundo momento da encenação.
Definitivamente, contudo, é o ator Marcelo Ádams, como o homossexual que faz qualquer negócio para sobreviver, mas que aos poucos descobre o verdadeiro amor, que merece todo o nosso respeito e nossas homenagens: é seu melhor trabalho. Adams incorpora profundamente o personagem, sofre com ele e se emociona com ele, emocionando a cada um de nós, na plateia. A seu lado, os dois parceiros, o que vive o bailarino e, enfim, o que vive o prisioneiro que acaba morrendo a seu lado. Mas, de modo geral, todos os demais intérpretes evidenciam uma perspectiva de grupo que raras vezes se vê, sobretudo em espetáculos desta natureza.
Em síntese, por tudo e em tudo, a Cia. Teatro Ao Quadrado, de Margarida Peixoto e Marcelo Ádams que, ao longo dos anos, tem-nos propiciado a descoberta de excelentes textos dramáticos, agora se superou. Que bom para nós."

domingo, 31 de agosto de 2014

OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA: RUDOLF BRAZDA, O ÚLTIMO SOBREVIVENTE



Rudolf Brazda (1913-2011) foi o último sobrevivente dos triângulos rosa. Apesar da terrível experiência vivida no campo de concentração de Buchenwald, onde permaneceu de 1942 a 1945, ele viveu incríveis 98 anos, contando sua história no livro Triângulo rosa: um homossexual no campo de concentração nazista, escrito em colaboração com Jean-Luc Schwab. Nessa entrevista, Brazda relata algumas passagens de seu confinamento, que foram utilizadas na criação do espetáculo OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA, com estreia marcada para o dia 10 de outubro, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre.
Rudolf Brazda, aos 18 anos
 
Rudolf Brazda, em 1937
 
Rudolf Brazda, com mais de 90 anos
 

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA - FLAGRANTES DE ENSAIO

A talentosa fotógrafa Luciane Pires Ferreira é a responsável pelas imagens do novo espetáculo da Cia Teatro ao Quadrado, com estreia marcada para 10 de outubro, no Theatro São Pedro. OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA é o 11º espetáculo da companhia, e traz como tema principal a perseguição aos homossexuais durante os anos 1930 e 1940 na Alemanha nazista.
Contemplado com o Prêmio Myriam Muniz de Teatro 2013 para sua montagem, concedido pela Funarte, nosso novo trabalho adapta algumas obras literárias para estruturar sua dramaturgia: Bent, de Martin Sherman, Triângulo rosa- um homossexual no campo de concentração nazista, de Rudolf Brazda e Jean-Luc Schwab, e Eu, Pierre Seel, deportado homossexual, de Pierre Seel.






 

domingo, 17 de agosto de 2014

A VIDA DELE

A equipe se repete, com poucas alterações, desde o nascimento do ensemble: o In.co.mo.de-te, surgido em 2009 com O gordo e o magro vão para o céu - a primeira das incursões no universo dramático de Paul Auster -, se notabiliza por trabalhar com elencos pequenos e que atuam em forma de rodízio. O ator de um espetáculo será o diretor do próximo, e vice versa. Desta vez, com a convocação de Ramiro Silveira para assumir a direção, agrega-se (espero eu) um novo elemento aos que já faziam parte do In.co.mo.de-te. Nessa terceira parte da Trilogia Auster, retorna o investimento maior no humor non sense, visto em larga medida em O gordo e o magro..., e que havia sido substituído por outro tipo de humor (como chamar o que acontecia em DentroFora, a segunda parte da trilogia?), mais "sofisticado". Em A vida dele, identifico algumas influências explícitas na estética do espetáculo. A primeira delas é dos quadrinhos, representada não apenas nas movimentações dos atores, nas ações por eles praticadas e na iluminação, mas até mesmo na proposta cenográfica, que literalmente enquadra os atores através das quatro molduras-janela, proporcionando um recorte típico das HQs - faltaram apenas os "balões" com as falas das personagens para ser ainda mais quadrinístico. Outra homenagem é aos palhaços clássicos: desde os narizes postiços que as três figuras principais usam, mas principalmente na relação que se estabelece entre Peter (Nelson Diniz) e Verde (Liane Venturella), que remete seguidamente à dupla de clowns Branco e Augusto.
Quanto à dramaturgia, inspirada em Paul Auster, mas creditada a Michelle Ferreira, aponta para a primeira fase do dramaturgo inglês Harold Pinter, especialmente a peça The dumb waiter, de 1957 (às vezes traduzida como O serviço ou O monta-cargas), por sua situação de dúvida inicial em relação aos objetivos das personagens na ação em que se veem envolvidos: aguardar pelo que fazer (interessante volta ao tema da primeira peça da trilogia do grupo, que emulava o Esperando Godot de Beckett). Não posso deixar de mencionar o brilhante filme alemão A vida dos outros (2006), de Florian Henckel von Donnersmarck, que parece ter inspirado o título do espetáculo, em que um agente alemão passava a vida espionando pessoas, na Alemanha Oriental comunista.
Finalmente, e como um arremate às influências anteriores que identifiquei na estética do espetáculo, cito o filme Dick Tracy (1990), dirigido por Warren Beatty, que aproveitava as personagens criadas pelo quadrinista norte-americano Chester Gould em 1931: nelas, o detetive particular Dick Tracy combatia o crime e vários vilões extravagantes. A vida dele não trabalha com o conceito de vilão, mas a atmosfera noir, reforçada pela iluminação e pela trilha sonora, além da presença da figura do detetive particular e de espiões em cena, remete ao mesmo universo. O uso das próteses nasais pelo trio de atores para desnaturalizar suas feições me lembrou a incrível maquiagem de caracterização criada para o filme de Beatty, em que os devaneios de Chester Gould eram concretizados com muito látex e acessórios do tipo.
Por tudo isso, e pela excelência na execução, A vida dele é um espetáculo de imensa qualidade e refinamento visual. Os três atores (Carlos Ramiro Fensterseifer, Liane Venturella e Nelson Diniz) estão inteiros, e jogam entre si maravilhosamente. É, no fundo, uma grande brincadeira (como deveria ser, sempre, o teatro, mesmo quando se faz uma tragédia), em que a plateia se diverte muito. A atuação de Liane Venturella é absolutamente hipnótica, e ela me orgulha muito sendo uma artista nossa, generosa e humilde no convívio conosco, seus colegas de profissão. Nunca faço esse tipo de prognóstico, porque as comissões de prêmios têm me surpreendido tanto nos últimos anos pelos equívocos cometidos, que qualquer tentativa de antecipação é temível; mas preciso escrever que acredito ser difícil, para qualquer outra atriz em 2014, superar o trabalho que Liane desenvolve em A vida dele. Um domínio técnico do clown e da linguagem do espetáculo irrepreensíveis, um trabalho vocal primoroso, um timing cômico suíço. Também sei que Liane não atua pensando em prêmios, assim como eu: tudo é consequência da dedicação ao trabalho e da entrega ao nosso ofício. Às vezes isso é percebido pelos outros, outras vezes, não. A gente segue o nosso caminho, que não se restringe a isso.
Muitos parabéns à equipe do espetáculo: Ramiro Silveira pelo amor ao teatralismo e pela concepção precisa, Michelle Ferreira pela linha dramática flexível que concede ao trabalho dos atores o foco principal, Cláudia de Bem pela iluminação perfeita e pela cenografia, Álvaro Rosacosta pela excelente trilha sonora, Carlos Ramiro pelos figurinos, e por aí vai. Não tem como não recomendar: assista.

domingo, 3 de agosto de 2014

CAVALOS NO CINEMA

Dois grandes filmes, que têm em comum alguns elementos. O mais óbvio é a referência a cavalos: A noite dos desesperados (1969), que é o título um tanto inadequado que recebeu no Brasil o longa They shoot horses, don't they? (em livre tradução, algo como Eles sacrificam cavalos, não é?), dirigido por Sydney Pollack a partir da novela de Horace McCoy; e O cavalo de Turim (2011), do cineasta húngaro Béla Tarr. O que mais os aproxima? No filme norte-americano, a maior parte da ação acontece durante uma maratona de dança, na Califórnia de 1932, em plena Depressão. Dezenas de casais dançam pelo prêmio de 1500 dólares, durante semanas sem parar, desmoronando seus corpos e suas ilusões perante uma entusiasmada plateia que paga ingresso para ver os competidores lutarem pela vitória. Não faz lembrar um pouco os atuais reality shows televisivos?
O cavalo de Turim é um dos filmes mais belos e artisticamente rigorosos a que já assisti. Ambientado na Hungria "profunda" do final do século XIX, o filme tem como ponto de partida uma história real ocorrida com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em 1889: estava ele na cidade italiana de Turim quando presenciou um cocheiro espancando, em plena rua, um cavalo que se negava a andar, por cansaço. Vendo a agressão, Nietzsche aproximou-se do cavalo e empurrou o cocheiro, abraçando-se ao pescoço do animal e caindo no choro. Encontrado por um amigo, o filósofo foi levado para casa, onde permaneceu dois dias em completo silêncio, como que catatônico. Ao fim desse período, Nietzsche jamais voltou ao estado normal, permanecendo os seguintes dez anos de sua vida, até sua morte, demente e dependente da mãe.
A obra-prima de Béla Tarr cogita o que teria acontecido ao cavalo de Turim, que seria o detonador da crise nietzschiana. Em um fascinante exercício de ficção, o filme nos coloca frente a frente com três personagens: um pai de 58 anos, sua filha, e o cavalo, vivendo em uma paupérrima propriedade rural. Com quase 150 minutos de duração, em uma extraordinária fotografia em preto e branco, divididos em 30 planos-sequência que repetem, sob variados enquadramentos de câmera, o repetitivo cotidiano dessas três figuras, O cavalo de Turim é uma experiência inesquecível que fala sobre o tempo. E também sobre algo que o liga, de alguma forma, ao filme de Pollack: a crise advinda das péssimas condições no campo.   

 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO

Um garoto cego se apaixona por um colega recém chegado à sua escola. Um belo filme, dirigido por por Daniel Ribeiro, recém lançado (2014). Delicado e (por que não?) romântico, tratando da descoberta da sexualidade na adolescência. Originalmente, essa história virou um curta-metragem, dirigido pelo mesmo Daniel Ribeiro, que ampliou para um longa. Vale muito a pena assistir.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

A VERTIGEM DOS ANIMAIS ANTES DO ABATE: A VISÃO DE ANTONIO HOHLFELDT

Apesar de considerar o jornalista e professor Antônio Hohlfeldt um homem muito inteligente, geralmente sinto falta de que, em suas análises teatrais, ele valorize a encenação (aquilo que não é dado a priori por um dramaturgo, escrevendo no conforto de seu gabinete, a milhares de quilômetros de distância) tanto quanto a dramaturgia, em um espetáculo. O que geralmente leio é o contrário: Hohlfeldt argumenta bastante sobre a dramaturgia e deixa de lado justamente aquilo QUE FAZ DO TEATRO, TEATRO, ou seja, os inúmeros elementos que se juntam, se influenciam, se atritam, se contradizem, no momento presente, no "ao vivo" do evento teatral. Mesmo com essa ressalva, compartilho a opinião escrita de Hohlfeldt sobre nosso espetáculo, lamentando no entanto que ele dedique apenas algumas linhas aos artistas locais, que literalmente suam as camisetas durante 2 horas, e destaque a inegável qualidade do texto de Dimítris Dimitriádis. Também ressalto a distraída não menção do nome de MARGARIDA PEIXOTO, cujo nome consta no programa distribuído a todos os espectadores, como codiretora de A vertigem dos animais antes do abate, ao lado de Luciano Alabarse. Segue o texto de Hohlfeldt, publicado no Jornal do Comércio de Porto Alegre, em 18 de julho de 2014:
 

Ousadia e profunda reflexão

Sempre que temos a possibilidade de conhecer um novo dramaturgo, sobretudo contemporâneo, este é um momento de alegria. No caso de Dimítris Dimitriádis, tão mais importante porque, em ampla circulação na França, onde se encontra consagrado, é quase inédito no Brasil (há uma montagem em São Paulo que adapta um texto de prosa, dele, para o teatro, a exemplo do que já ocorreu na Europa), tanto quanto em seu país de origem, a Grécia, o que não é para admirar, tal a subversão das formas clássicas e a ferocidade com que investe contra o estatuto da classe média.
A vertigem dos animais antes do abate, belíssimo título, que é referido no interior do texto, pelo coro, é uma peça instigante: faz citações mais ou menos diretas a boa parte das tragédias clássicas, de Ésquilo a Eurípides, passando especialmente por Sófocles. Neste texto, igualmente, inverte-se aquilo que Aristóteles havia reconhecido, em seu estudo sobre a tragédia: quem comanda os destinos dos homens são os deuses. Ora, para Dimitriádis é o inverso: quem comanda o universo dos homens são os próprios homens e o grande responsável pela infelicidade humana é o falo masculino. Por isso, ao final do espetáculo, ocorre a autocastração, numa tentativa de eliminar o motivo causador da tragédia. Contudo, o personagem não se dá conta que existe algo mais do que o simples sentido sexual. Quando Militsa planeja o casamento com Nilos, não o faz apenas por uma questão de desejo sexual, mas, mesmo que inconscientemente, por ambição. Esta se torna, no curso da peça, a grande motivadora do que se vai seguir. É o que leva Nilos a romper com Filon: casar com Militsa é o modo pelo qual o casal vai ascender socialmente. Há uma passagem interessante, aí pela metade do texto, em que Nilos recorre à Filon para recompor a maldição que então o amigo e amante lhe antecipara. O que ele necessita é precisar a ordem pela qual a maldição foi pronunciada. O que temos, então, é claro: o final do I ato ocorre quando Nilos apresenta à esposa uma espécie de inventário de todos os imensos bens que possuem. O II ato já se abre, contudo, com o início da queda.
É como se Dimitriádis seguisse a perspectiva debatida, nos anos 1970, por Herbert Marcuse: entre Eros e Tánatos (vida e morte; sexualidade e poder, seja ele financeiro ou político, ou ainda ambos, como se depreende da peça, a contemporaneidade dá preferência ao segundo. Esta é a sua culpabilidade). Nilos, então, recria a ordem da maldição. Relembra Filon: “Viverão felizes no início, vão enriquecer e ter tudo o que nunca sonharam, mas pouco a pouco voltarão a perder tudo”. Esta é a chave, em meu entender, de toda a peça. Para mim, portanto, é menos uma questão psicológica ou algo parecido, mas política, sem o que fica sem sentido toda a passagem que envolve Evguenius, inclusive o fato de ele morrer por uma pretensa revolução gorada. Há, claro, uma relação entre a sexualidade e a Economia/Política (poder) mas há, também, uma avaliação, por parte do dramaturgo, que esta ambição pelo poder mata a sexualidade e produz todos os acontecimentos trágicos que a peça desenvolve. Por isso a reflexão final de Nilos: “Ninguém pode escapar do que lhe está destinado.  Isso é uma pergunta? Não. A pergunta é qual é a pergunta. Ainda não sei qual é a pergunta”.
Luciano Alabarse evidencia enorme ousadia e coragem ao realizar a montagem deste texto. Teve uma bela produção, o que demonstra ter investido forte e resolutamente. A presença do maestro Everton Rodrigues, ao piano, que há poucos dias me chamou a atenção por seu trabalho em Godspell, confirma sua qualificação. A escolha de Chopin, por exemplo, é sensível. A interpretação de Muni é inesquecível. O elenco todo se encontra muito equilibrado, seguro, corajoso.
Teria apenas pequenos reparos a fazer: não entendi por que os homens ficam nus e as mulheres, não. Também discordo do modo pelo qual Alabarse conclui o espetáculo. A incidência final da canção é dispensável. Não se discute a natureza humana quanto à animalidade sexual (erótica) e, sim, quanto à animalidade da ambição.

domingo, 13 de julho de 2014

A VERTIGEM DOS ANIMAIS ANTES DO ABATE: O SACRIFÍCIO DO FALO


Texto escrito pelo historiador e arqueólogo Francisco Marshall, e publicado no caderno Proa do jornal Zero Hora, edição de 13/07/2014:

O SACRIFÍCIO DO FALO
A tragédia A Vertigem dos Animais Antes do Abate, do dramaturgo grego Dimítris Dimitriádis (1944), ora montada por Luciano Alabarse e Margarida Peixoto, realiza no palco do Theatro São Pedro um rito trágico completo, com sacrifício, aniquilamento e a catarse que só as grandes obras podem provocar. Catarse, do grego katharsis, purificação, é o resultado de um ritual profilático, em que, segundo Aristóteles, são purgados terror e piedade, e com isso se produz a experiência do assombro e, ao mesmo tempo, do alívio: todos aqueles horrores aconteceram lá, no palco, mimetizados, e podem ser agora vividos, apreciados e examinados, com a proximidade e a distância dadas pela arte.
O título refere a antessala do abate, na cozinha do sacrifício; nesta, as vítimas são preparadas ritualmente, para que possam recolher todas as máculas do ambiente e assim purgar a comunidade de miasmas que podem embotar as fontes da vida. Este processo era designado pelos romanos como augmentum, a preparação das vítimas, e é disto que trata esta tragédia, de demonstrar a anatomia do sacrifício, de seus pródromos à consumação. Desde o título e em todo o texto, a natureza humana é posta em xeque, pela metáfora animal com a qual se identifica também algo de nossa bestialidade, o peso de uma parte orgânica e irracional do ser humano, que se descobriu ser frequentemente protagônica. Eis aí a questão trágica central: o que é o ser humano, o mais terrível dos seres terríveis? Eis também a questão posta ao espectador: eu sou isto? Quando, como e em que medida?
O drama situa-se no cerne da herança trágica grega. Há nele Ésquilo e a dimensão teológica do destino, há Sófocles como guia dramático e há a passionalidade cínica de Eurípides. Mega-edipiano, o drama começa com a emissão, na quarta cena, de uma profecia pavorosa, em tudo similar à que Tirésias lança no primeiro episódio de Édipo Rei. Esta ousadia do autor, antecipar o desfecho, na obra de Sófocles é sucedida por um desvelamento judiciário e detetivesco da verdade trágica, a mais perfeita peripécia, ao passo que Dimitriádis segue o caminho inverso: explicitar a morfologia cotidiana do trágico, revelá-lo cruamente, tornando evidente o que na tragédia grega clássica era obsceno. Sob o manto da profecia do personagem Fílon e dentro de um palacete burguês, a mais perversa trama de incesto e violência tem lugar: pai, mãe, filhos e filha entregam-se a todos os desejos iníquos, ao ponto de a mãe Milítsa (duplo de Jocasta) ter um filho e neto do próprio filho caçula, Evguenius. Ao contrário do Édipo sofocleano, porém, o protagonista Nilos cresce em riqueza e poder durante a trama, e realiza o destino de que foi advertido, sem ironias ou erro em estado de ignorância (hamartía), imbuído do furor faltoso que o arrasará e à sua família. É a voracidade e a irracionalidade do desejo que são examinados; o sujeito desta pulsão fatal é exposto no texto e no palco, e por fim indiciado como fonte dos males e aniquilado em cena: o falo.
A tragédia grega era criptofálica; havia falo monumental no centro da plateia, sob a forma de uma escultura própria dos ritos de fecundidade do culto de Dioniso, mas jamais se refere ou se apresenta o falo em cena. Todavia, a Atenas clássica era, como definiu Eva Keuls em The Reign of the Phallus (1985), uma falocracia, e nisto Dimitriádis assinala sua contemporaneidade pós-freudiana, e devolve a questão aos trágicos gregos. A inversão trágica trata de apresentar o instrumento de prazer e perpetuação da espécie como causa de sofrimento e aniquilamento. O espectador poderá especular: será o falo este criminoso tal? Será que o signo da virilidade é também símbolo da catástrofe, a origem da perdição dos indivíduos e das famílias? A denúncia atinge o patriarcado ocidental e suas formas de vaidade e poder; logo, é tragédia também histórica, social e política.
Há mais tragédia grega na estética do texto, não apenas na voz do coro, mas também na referência a Antígona e o cadáver do irmão e na marca de Electra, o exame das relações de fraternidade e das vinculações pai-filha. Há também muito Ésquilo, na reflexão sobre o destino que se estende à angústia bíblica e as relações sórdidas entre criador e criatura. Abre-se a questão entre destino, condição humana e inteligência: esta condição trágica é um destino inexorável ou preserva-se autonomia para contornarmos tal sina e vivermos felizes? Édipo é tragédia do destino e, simultaneamente, do indivíduo que se afirma como autor responsável por seus atos. Dimitriádis altera a equação, e põe toda a força do destino no sujeito, apagando da personalidade autoral o freio da consciência, e provocando o empate entre profecia e história. Sempre dentro da fórmula clássica, o dramaturgo elimina todas as possibilidades e conduz a ação para o aniquilamento final, em que se dá a anagnórisis (a passagem da ignorância ao conhecimento), em que tudo deve se tornar claro para os agentes conduzidos por destino ou cegueira, no palco e na vida.
 

terça-feira, 8 de julho de 2014

O QUE O TIO FACEBOOK NÃO DEIXA MOSTRAR

Como muitos sabem, e alguns já sentiram na pele, a política do Facebook não permite o compartilhamento de fotos que sejam por eles consideradas "apelativas sexualmente" ou "imorais". Como o Tio Blogger é mais liberal, resolvi, num acesso de despudor, colocar aqui uma foto de cena em que apareço em nu frontal, clicada pela ótima fotógrafa Luciane Pires Ferreira. A Luciane foi ao Theatro São Pedro, durante nossa temporada de A VERTIGEM DOS ANIMAIS ANTES DO ABATE, e em meio a muitas lindas fotos, algumas delas registram um momento muito especial para mim, em minha carreira: minha estreia, depois de 21 anos de teatro, com um nu. Não é algo tão raro assim, convenhamos: o teatro é um local em que a nudez masculina é bem mais comum que o cinema, por exemplo. Quando cursava Jornalismo na PUCRS fui aluno do Tatata Pimentel na disciplina de Teoria da Comunicação, e uma coisa que ele sempre ressaltava era o horror causado pela visão de um pênis (muito mais agressivo que uma vagina: questão de visibilidade, já que o órgão reprodutor masculino é externo, e o feminino, interno). Tatata exemplificava essa interdição ao nu frontal masculino com imagens de campanhas da Benetton:
 
 
Aqui em Porto Alegre, por inúmeras vezes o nu esteve presente: nos espetáculos do Ói Nóis Aqui Traveiz, do Roberto Oliveira, do Teatro Sarcáustico...Neste ano assistimos também uma excelente montagem, Isso te interessa?, da Cia Brasileira de Teatro, em que os atores permaneciam o tempo todos nus, e não era nada nada apelativo, era lindo e totalmente conveniente à linguagem do espetáculo.
Então, eis aqui minha contribuição à desmistificação da nudez masculina em cena: interpretando o patriarca atormentado Nilos Lákmos de A vertigem dos animais antes do abate, chego a um ponto muito importante da minha vida no teatro: o que a língua inglesa conceitua como point of no return, aquele em que assumo publicamente, com a exposição máxima de meu corpo, minha devoção à minha arte. É provável que essa minha declaração de princípios e amor pelo teatro não soe tão importante assim para ninguém mais além de mim. É que o teatro, apesar de ser uma arte coletiva por definição, acontece primeiro dentro de cada um de nós, atores e atrizes, que nos entregamos, fisicamente e psiquicamente ao nosso ofício, na solitude de nossos corações e mentes. Para mim, esse momento é como a confirmação da crisma no ritual católico. Já que não tenho uma religião oficial, confirmo os votos da minha religião paralela: o Teatro.


 

sábado, 5 de julho de 2014

A VERTIGEM DE UMA ESPECTADORA

 
Uma espectadora assistiu A vertigem dos animais antes do abate e colocou em seu blog (www.tagarela78.blogspot.com.br) as suas impressões. São tão bonitas as palavras da Daniela Spera, que as reproduzo aqui:
 
Uma experiência arrebatadora
Faz tempo que não venho compartilhar minhas impressões sobre algum espetáculo, apesar de estar sempre presente na platéia conferindo o que rola por puro amor e prazer. Ontem, porém, passei por uma experiência arrebatadora ao assistir à estréia de “A Vertigem dos Animais Antes do Abate” no Theatro São Pedro. Tão arrebatadora que senti necessidade de compartilhar.
Não via um trabalho teatral tão bom há tempos. É notória e emocionante a entrega dos atores às personagens. Tanto que eu imagino que eles terminem o espetáculo esgotados tanto física quanto emocionalmente. E nós, a platéia, chegamos ao fim do espetáculo encantados, arrebatados.
Infelizmente, na saída do teatro, no elevador da garagem, alguns casais que desceram conosco comentavam negativamente a peça. Inclusive, perguntaram a mim e ao meu marido se havíamos gostado ao que prontamente respondi que sim, muito. E logo vi narizes torcidos para mim… Os comentários diziam que a peça era doentia e uma das senhoras disse que nem ia conseguir dormir direito. Uma pena que não tenham conseguido captar a mensagem…
Realmente o espetáculo pode ser chocante para algumas pessoas pois trata da selvageria humana, daquilo que nos é mais primitivo, dos instintos. No entanto, o que o público precisa entender é que o fato de tais situações serem encenadas não significa que está sendo feita uma defesa desses comportamentos. Apenas está sendo retratada, como já disse, a selvageria humana, nosso lado mais primitivo. Talvez, se não tivéssemos tantos filtros, se não fôssemos civilizados, se todas as regras,  se todos os valores morais, se o ego e o superego saíssem de cena, nós agíssemos assim. Ou seja, seria o reinado do id. Talvez essas poucas pessoas que desceram conosco no elevador do estacionamento não tenham conseguido fazer essa leitura. Sinto muito por elas. Eu dormi muitíssimo bem, ainda encantada e tocada pelo belíssimo trabalho a que tinha assistido. E é justamente essa a maior beleza do teatro: tocar o público, provocá-lo, emocioná-lo. Missão cumprida com louvor!
A peça mostra uma tragédia grega (literalmente, com todos os elementos típicos) porém contemporânea. As atuações dos atores são brilhantes! A entrega dos atores às personagens é total e linda de se testemunhar. Inclusive, lembro de ter pensado durante o espetáculo no quanto era impressionante ter sido reunido um elenco tão perfeito, de tamanha qualidade. Atores bastante conhecidos do público, como Marcelo Ádams e Ida Celina, e outros nem tanto (pelo menos, menos conhecidos para mim), mas todos excepcionais e talentosíssimos! Cada um ocupando o seu devido lugar e, assim, fazendo um belíssimo trabalho de equipe, tal qual o teatro deve ser.
A montagem está mesmo maravilhosa! O cenário é simples e dinâmico, cumprindo seu papel e deixando que as emoções exploradas pelo texto e pelas brilhantes atuações reinem absolutas. A direção é de Luciano Alabarse, que dispensa maiores comentários ou apresentações, e de Margarida Peixoto. Para completar, a música casa perfeitamente com a ação na bela voz de Muni e com o piano de Everton Rodrigues.
O texto original é do grego Dimitris Dimitriádis e nunca havia sido montado no Brasil. Só o título já conquista: “A Vertigem dos Animais Antes do Abate”, mas havia tantas passagens interessantes que eu juro que senti vontade de abrir a bolsa, puxar papel e caneta e anotar algumas frases. Um exemplo: “As perguntas são os alicerces do mundo. Por isso mesmo devem ficar sem respostas.”
Eu amei! Dou nota máxima, recomendo e assistiria outras vezes com toda a certeza. Felicidade é teatro de qualidade!
Meu único pitaco seria quanto ao desfecho do espetáculo… Minha cabeça ficou imaginando que seria bastante interessante que no momento em que o personagem Nilos Lákmos diz a seguinte fala, na beira do palco, encarando o público: “Eu sou Nilos Lákmos. E vocês quem são?”, poderiam se apagar todas as luzes e terminar o espetáculo. Acho que seria impactante, arrebatador mesmo (mas, claro, é apenas minha humilde, leiga e delirante opinião). Afinal, para mim, esse é o grande lance da peça: você domina os seus demônios ou permite que eles dominem você?
Daniela Annes Spera – Porto Alegre, 04 de julho de 2014
#avertigemdosanimaisantesdoabate
 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

FAMÍLIAS FORA DA ORDEM

Nosso espetáculo A vertigem dos animais antes do abate traz, como uma boa reatualização da tragédia grega, uma família como núcleo, onde brotam e apodrecem amores e ódios interditos. No seio dessa família de gregos contemporâneos, os Lákmos, formada pelo patriarca Nilos e a matriarca Militsa, e os filhos Emilius, Evguenius e Starlet, têm lugar terríveis acontecimentos, o que torna ainda mais chocante as ações por eles praticadas. O autor da peça, Dimítris Dimitriádis, ele próprio grego, escreveu seu texto em 2000, recheando de citações à mitologia e às figuras atormentadas da tragédia clássica ática.
O cinema também tem prazer em escarafunchar o interior de famílias, e revelar a tensão que subjaz aí. Alguns filmes que o fizeram, de modo exemplar:

 
Teorema (1968)
 
Os 7 gatinhos (1980)
 
A família Addams (1991)
 
 
Festa de família (1998)
 
Beleza americana (1999)
 
Álbum de família (2013)