O texto que se segue foi escrito por Igor Simões, que é ator, professor de História, Teoria e Crítica da Arte na Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul), e Doutorando em História, Teoria e Crítica da Arte na UFRGS. Após assistir Os homens do triângulo rosa, ele nos brindou com seu lindo texto e com uma aguçada mirada sobre nosso espetáculo:
"Sobre uma montagem necessária, útil e imperdível:
Os homens do triângulo rosa
Os tempos lá
fora andam sombrios. Pessoas defendem aquilo que afeta a existência do outro.
Tempos assim evocam sombras. Tempos assim evocam medo. Mas há um lugar. Um lugar
desvalorizado, por vezes. Criticado, reconstruído,
morto, reaparecido. Estou falando da história.
A história
como um lugar que montamos em nossas vidas a partir de nossas crenças. O historiador,
afinal, é um
de nós. O
teatro sempre foi o espaço
profano da história.
Apreende-a sem ceder aos seus caprichos. Há
a história,
há a estória - sua natureza
mais própria -
e há o teatro.
Em alguns momentos, o teatro pode servir como dispositivo. Dispositivo da história para olhar não para aquele lugar
distante e empoeirado mas para os dias que nos envolvem, e algumas vezes,
engolfam. O espetáculo
Os homens do triângulo
rosa, da Cia. Teatro ao Quadrado é
um desses momentos em que cotidiano, história
e arte se encontram e promovem mergulhos no íntimo
e no coletivo. No personagem do ator Marcelo Ádams moram concomitantemente o
passado da perseguição
nazista e o contemporâneo
de um Brasil (e de um mundo) que faz vistas grossas ao amor entre pessoas do
mesmo sexo e que inacreditavelmente levanta, a cada mudança de calendário, mais bandeiras
que apontam para a discriminação,
para o gueto, para o ouvido surdo ao
mundo que vem daquilo que me faz diferente do outro e que, assim, na diferença, me faz
humano. Mas não só.
Os dias recentes têm tornado invisíveis
a potência do
outro em ser aquilo que ele é:
outro. As urnas reveladas nos últimos
pleitos revelaram isso ao se verificar a enorme quantidade de votos de homens e
mulheres que defendem a supressão
do outro. O outro em tudo que ele tem de aventura e desdém, fascínio
e distanciamento. O trabalho da Cia. Teatro ao Quadrado é uma golfada de ar, amor, generosidade
e cuidado para com aquilo que nos faz mais gente. Para o amor e seus desvãos, para intolerância e sua
incapacidade de conter a represa do que é
vivo. A iluminação
cria atmosfera que abraça
toda ação. A cantora do cabaré pré-perseguição reunida ao piano desafiam o correto sem traí-lo e optam
por rasgar os conflitos e lembrar- nos
de que tudo é representação. Este tudo a que me refiro
inclui a guerra e as disputas em toda sua selvageria e humanidade. O conjunto
de atores é de
um equilíbrio
raro. Cada um deles está
em cena inteiro, defendendo uma história
difícil de ser
contada pelas dificuldades dramatúrgicas que impõe.
Manter atento um público
que durante muitos minutos se vê
diante de dois volumes feitos de pedra e cinza simetricamente colocados
criando uma limitação
intencional à representação enquanto dois
atores se movem entre eles exige corpo, presença,
voz em ato de vida. Nada disso falta,
por vezes, sobra. A direção
de Margarida Peixoto acerta ao mergulhar o público
no cascalho cotidiano do campo de concentração
e deixar que ele reviva cada segundo do errar cotidianamente sem saída mas em busca de
uma liberdade possível.
Enquanto isso as sutilezas de cada um dos personagens são operadas com cuidado, delicadeza
e atenção e se
mostram em inteireza de humanidade e compartilhamento de experiências entre o estar
em um determinado contexto histórico,
temporal e ainda, aquilo que se pode
fazer para que ele não
determine sozinho aquilo do que somos feitos. A prisão nazista do espetáculo é uma prisão para a liberdade.
Quanto mais encarceradas estão
as figuras que se despem diante do público mais se tornam evidentes suas estratégias para serem
livres em seu sexo, em seus amores, em seus temores e em sua insistência no resistir. Há espaços de luminosidade
plena na encenação.
Logo na primeira parte, os personagens gays, de amor livre e distante dos padrões do casamento gay
pré-Aids se
encontram no amor que ecoa das vozes de Gustavo Susin e Marcelo Ádams ao entoar
Somewhere over the rainbow. Hoje a canção pode soar clichê da representação do gay
americanizado. Na encenação
ela é um último facho de luz
em um amor que se sabe ao fim e que encontra ali, em meio a uma selva (ou
bosque?) de intolerâncias,
o último lugar
possível para
ser inteiro, genuíno,
humano.
Em uma agenda de espetáculos
que tende à comédia
que atrai público,
tocar em temas como este é
importante. Mais: é
necessário.
A cenografia acerta ao preocupar-se mais com atmosfera do que com a
funcionalidade. As imagens que se constroem diante dos olhos do público são potentes e
completamente dependentes da exatidão
dos atores que, capitaneados por Marcelo Ádams, que aqui interpreta o
protagonista, se dividem em momentos de inteireza e fé cênica.
Enfim, por este e por muitos outros motivos que ecoam após
assistir a montagem de Os homens do triângulo
rosa e que só se
tornarão
palavras após
um tempo necessário,
que toda boa arte exige, é
indispensável
que o público
prestigie, assista e perceba
o quanto de humano se perdeu ao se escolher o caminho da surdez, da cegueira e
da indiferença
a tudo aquilo que ao fim e ao cabo, como diz o protagonista 'é só amor (...) por que
está errado?'."
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