Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

domingo, 12 de janeiro de 2020

O JANTAR COM A SENHORA BECKETT

As referências ao dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989) estão lá, disseminadas pela encenação de Decio Antunes, por vezes sutis, por vezes frisadas recorrentemente: no título do espetáculo, que propõe a participação em um jantar nunca concretizado, conduzido por uma tal Senhora Beckett, e a menção à aguardada chegada de um certo Samuel, que termina igualmente não se realizando. As referências a obras escritas por Beckett são apresentadas com maior sutileza, quase como piscares cúmplices de olhos para os que estão familiarizados com obras-primas beckettianas como Esperando Godot, Fim de partida e Dias felizes. Por fim, em um contexto mais amplo - que abriga em si tanto a vida quanto a obra de Beckett - há a referência ao que muitos consideram o texto inaugural do Teatro do Absurdo, o ensaio filosófico O mito de Sísifo (1941), do franco-argelino Albert Camus, em que traz pela primeira vez à discussão sua filosofia do absurdo, que questionava o sentido da vida e se a saída para tudo seria o suicídio: Camus acreditava que a saída era a revolta.
Essas camadas referenciais são evidenciadas por imagens e palavras, oferecidas aos espectadores aos poucos, como peças de quebra-cabeças: a bela escadaria de madeira que somos orientados a vencer para adentrar ao cômodo em que se realizará o esperado jantar, é como a escalada de Sísifo com a pedra que lhe cabia levar eternamente ao topo da montanha. Em O jantar com a senhora Beckett escalamos o aclive da belíssima Casa Godoy, ainda que confortáveis pela ausência da pedra física (naquele momento carregávamos apenas nossas rochas metafísicas pessoais, é preciso lembrar); pedras concretas, em forma de matéria, também são visíveis - na fachada cheia de detalhes do casarão  art noveau ou nas grossas paredes dos aposentos (todo nosso esforço em buscar um sentido para o que vivenciamos naquela casa nos é devolvido em extensão, como se nos fosse dito "lide você mesmo com isso, crie você mesmo o sentido que melhor se adéque à sua psique, mas saiba que as pedras sempre farão parte de sua escalada diária nesta vida").
Inserido nesse panorama sisifiano, a encenação vai mostrando suas cartas, como as já citadas referências ao universo ficcional de Beckett. O brilhante irlandês não foi tão pródigo na criação de figuras femininas quanto foi em masculinas, é o que se percebe ao ler seus textos para teatro, novelas, romances e outros escritos. A encenação de Decio Antunes, contando com a atriz Naiara Harry como centro da cena, foi buscar algumas das marcantes mulheres beckettianas: a Winnie de Dias felizes, a boca feminina de Eu não, a velha de Cadeira de balanço e a anciã de Mal visto mal dito. A dramaturgia, a cargo do encenador, não faz uso direto das palavras de Samuel Beckett, restringindo-se a soltar pistas, como quando a Senhora Beckett casualmente comenta sobre alguns "dias felizes", mas principalmente em forma de ação (a boca de Eu não ampliada através do vidro do cálice que a atriz aproxima do rosto; a observação do mundo exterior através da janela, que cita a ação de Clov em Fim de partida e também da velha em Mal visto mal dito; o não comparecimento de Samuel ao jantar e a esperança de que talvez venha amanhã, como anuncia o menino em Esperando Godot).
O espetáculo, com cerca de 45 minutos de duração, busca um andamento lento para instaurar a atmosfera de estranhamento pretendida. A Senhora Beckett dirige-se aos espectadores o tempo todo, enquanto prepara vagarosamente a mesa de jantar, com a colocação de pratos e talheres. O estranhamento provocado pela figura algo sinistra da mulher vai, aos poucos, deixando entrever um humor enviesado e algo grotesco, à medida que vamos embarcando no non sense da situação que se desenrola, rodeados por antigos relógios de coluna. Me pego lembrando da tela surrealista A persistência da memória (1931), aquela dos relógios derretidos, do espanhol Salvador Dalí. 
A Senhora Beckett fala de solidão e de como as expectativas podem ser prejudiciais em confronto com a realidade. Nessa metáfora da vida como um jantar, por vezes as armas de que dispomos não são adequadas às batalhas que travamos. Consumir sopa em prato raso com garfo e faca. Mas, pelo menos, somos civilizados: o guardanapo à nossa disposição é o que nos coloca do lado de cá do muro que separa civilização e barbárie. Recordemos Camus: o suicídio não é a melhor saída, nos revoltemos, ainda que armados de colheres (e um belo guardanapo de pano pode ser um bom torniquete). 
Naiara Harry é uma atriz de amplos recursos expressivos e, trabalhando mais uma vez com Decio Antunes, demonstra grande integração com a poética tragicômica do encenador, modelando os tempos distendidos, as pausas e as intenções mais adequadas para nos provocar uma sensação de estranhamento. Os momentos de destaque em sua atuação estão vinculados à sua habilidade em desconcertar os espectadores pela via do humor. Naiara, que ao longo de sua carreira tem mostrado sua aptidão para a comicidade, é uma escolha adequada para esse passeio pelo universo de inspiração beckettiana, que inegavelmente tem raízes no teatro de variedades inglês. 
O jantar com a senhora Beckett é um passo além (ou um degrau a mais) na trajetória do encenador Decio Antunes que, talvez como um Beckett subtropical, vem sintetizando seus trabalhos cênicos em frascos menores: dos épicos-dramáticos As núpcias de Teodora- 1874 (2000) e A ronda do lobo- 1826 (2002), deslizou para a centralidade feminina em Mulheres insones (2006), abordagem com espírito de teatro-dança que marcou sua afirmação da mulher como tema fulcral em sua poética. Em 2014, Um dia assassinaram minha memória, com elenco todo formado por mulheres, já confinava ao prédio histórico do Museu Júlio de Castilhos as ações e memórias de um grupo de figuras femininas. Neste novo trabalho, de 2020, novamente uma mulher, finalmente sozinha, em uma velha casa de paredes descascadas, fala de solidão. Assim como Beckett, que em seu teatro deixou de lado as tramas de narrativa dramática e avançou pelos flagrantes de figuras solitárias em lugares indefinidos, Decio não quer contar histórias, apenas oferece um momento de encontro, uma vivência, como ele próprio escreve no programa do - devo chamar assim? - espetáculo.