Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

sábado, 29 de setembro de 2018

LEONARDO MACHADO, GRACIAS A LA VIDA

Essa imagem, de 2010, clicada por Júlio Appel, é de uma sessão de fotos para a divulgação da montagem do espetáculo Bodas de sangue, com texto do dramaturgo espanhol Federico García Lorca, que estrearia em Porto Alegre naquele ano, com direção de Luciano Alabarse e Luiz Paulo Vasconcellos. Aí estão Leonardo Machado, que atuaria como o Noivo, Sissi Venturin, que atuou como a Noiva, e eu, Marcelo Ádams, que atuei a personagem Leonardo (uma curiosa coincidência esse nome da minha personagem) - o triângulo amoroso fatal que põe a tragédia de Lorca em movimento. 
Léo não continuou no elenco (foi substituído por Fabrizio Gorziza), pois foi envolvido pela onda avassaladora de seu sucesso como protagonista do longa metragem Em teu nome, dirigido em 2009 por Paulo Nascimento, pelo qual ganhou o kikito de melhor ator no Festival de Cinema de Gramado. Ele foi chamado pela Rede Globo de televisão para participar de uma telenovela, o que inviabilizou sua participação na peça. 
Gracias a la vida, canção que se notabilizou com a voz de Mercedes Sosa, está no título dessa postagem porque desde 2009, sempre que a ouço, lembro do Léo. Foi assim: durante o Festival de Gramado daquele ano em que foi premiado, e no qual eu também estava com outro filme, Quase um tango, do querido Sérgio Silva, nos hospedávamos no mesmo hotel, o Serra Azul. Como sempre acontece nesses eventos em que artistas se encontram, a vontade de conversar e ficar juntos durante o máximo de tempo possível fazia com que varássemos algumas madrugadas, junto com vários outros artistas do Brasil todo, à volta da lareira do hotel, bebendo, conversando e cantando. Léo ficava algumas vezes com o violão, e ouvi dele que a canção que mais o emocionava era Gracias a la vida. E o ouvi tocar e cantar esse verdadeiro hino à vida.
Nesse momento tão triste, em que perdemos esse ator tão especial, a canção de Mercedes Sosa é totalmente adequada, e diz muito sobre a forma como Leonardo Machado viveu. A vida lhe deu muito: reconhecimento por seu trabalho, amigos e família que o amavam. O momento em que partiu nos parece tão precoce porque ele merecia, e nós merecíamos, mais tempo juntos. 

domingo, 2 de setembro de 2018

MACBETH E O REINO SOMBRIO

A tragédia Macbeth foi escrita em 1606 pelo inglês William Shakespeare (1564-1616), vindo a se tornar, com o passar do tempo, uma das mais celebradas e encenadas peças de seu autor em todo o mundo. A exemplo de quase todas as suas tragédias e comédias, em que adaptava ou utilizava como mote para servir de base para sua escrita as obras de outros autores, ou lendas, ou mesmo eventos históricos reais, Shakespeare aproveitou, nesta que também é conhecida como "the scottish play" (a peça escocesa), eventos ligados à vida de um rei escocês do século XI. O monarca Macbeth (1005?-1057) teria reinado entre os anos de 1040 (quando assassinou o então rei Duncan I em uma batalha) e 1057 (quando foi morto também em batalha, em 15 de agosto de 1057, por aquele que se tornaria, no ano seguinte, o rei Malcolm III, filho do usurpado Duncan I). 
A mais curta (e, portanto, objetiva no vertiginoso desenrolar da ação) e uma das mais violentas tragédias de Shakespeare (ainda que Hamlet e Tito Andrônico, por exemplo, compitam bastante bem nesse quesito), Macbeth se tornou um paradigma de boa composição dramática, expondo com brilho a ascensão e a queda de seu protagonista com riqueza de nuances psicológicas, assim como de sua coprotagonista Lady Macbeth. Em suma, a peça escocesa traz uma fábula sobre como a ambição pelo poder pode virar um ser humano pelo avesso, expondo aquilo de que se envergonha ou às vezes nem tem consciência que traz dentro de si. A maldade, a falta de empatia, o maquiavelismo (os fins justificam os meios) são temas que percorrem a narrativa escocesa, temperados - como o público de teatro apreciava no tempo de Shakespeare - com aparições sobrenaturais e de criaturas ligadas ao lado oculto e mágico da existência humana.
Adaptar Macbeth para sua proposta de encenar "Shakespeare para crianças", que o Coletivo Órbita desenvolve, se torna nada menos que um desafio, mesmo que essa palavra seja tão batida quanto vitamina de banana. Hoje em dia, 9 entre 10 entrevistados enfatizam o "desafio" que é atuar, escrever, dirigir, etc., etc. Com o perdão do uso que faço dessa palavrinha, acredito que neste caso específico autodesafio é a expressão adequada, pois não há facilidades em contar, em cerca de 45 minutos, a história de um homem que recebeu de três bruxas uma profecia de que seria o próximo rei e que, em colaboração com sua mulher: trama o assassinato do monarca em sua própria casa, assume o trono, manda matar todos aqueles que porventura possam ameaçar sua permanência no poder (inclusive crianças), é visitado pelo fantasma ensanguentado de sua vítima, e é finalmente morto em batalha e decapitado. Ah, e tudo isso para crianças assistirem e se divertirem.
Talvez o que tenha motivado o grupo a encarar essa tarefa tenha sido, além da admiração por Shakespeare, a trama específica de Macbeth, que em vários aspectos se cruza com a atmosfera encontrada na série estadunidense Game of Thrones - esta, sem dúvida, um dos maiores sucessos da TV mundial dos últimos anos, e que tem estimulado ficções que investem num tipo de ambientação medieval (até a Globo criou algo assim recentemente, na telenovela Deus salve o rei). O fato é que contar uma história que originalmente tinha 36 personagens com apenas dois atores e uma atriz, sem que tudo se torne confuso, apostando na ação dramática e não apenas na narração (como contadores de histórias poderiam fazer) para presentificar as situações shakespearianas, poderia ser um problema - mas se tornou, felizmente, uma boa solução.
Oriundos da Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul), os atores João Pedro Decarli (que é também o encenador deste trabalho) e Rodrigo Waschburger e a atriz Camila Pasa criaram o espetáculo Macbeth e o reino sombrio em uma disciplina de Prática em Direção Teatral do curso de Teatro - Licenciatura, sediado na cidade de Montenegro. Após o âmbito acadêmico, a peça ganhou o circuito comercial e vem realizando apresentações por cidades gaúchas desde 2017, chegando agora a Porto Alegre para uma breve temporada na Sala Álvaro Moreyra. Minha reação ao que vi foi de entusiasmo e de reforço à ideia de que um bom teatro se faz, na maioria das vezes, sem a exigência de uma grande produção em termos de riqueza de meios (falo daqueles meios que demandam consideráveis somas de dinheiro para serem possíveis), já que acredito serem os trabalhos de atuação e uma dramaturgia bem articulada os mais eficazes elementos que tornam a experiência da recepção teatral bem sucedida e prazerosa. 
Destaco, primeiramente, a excelente sacada que é contar a sombria trama de Macbeth em um espetáculo para crianças (embora, de fato, não seja apenas para os pequenos, pois me diverti bastante). A estratégia encontrada foi a de fazer transbordar a teatralidade: na alternância veloz entre personagens, que é imposta ao trio de atuadores para que possam dar conta de tantas figuras necessárias ao andamento da fábula; na aposta, sempre bem sucedida, no humor como chave da comunicação com os espectadores; no trabalho acrobático da atriz e dos atores, que demonstra qualidade e inventividade; na simples mas bem utilizada cenografia, composta por duas escadas articuladas, que tomam diferentes formas ao longo da peça, além de três grandes panos que criam um fundo para as ações, além de, em outros momentos, servirem como plataforma para cenas de teatro de sombras; no preciso jogo entre o trio e as propostas da encenação, já que esta  constantemente propõe a metalinguagem como recurso de empatia com o público. 
Sobre a cena, o trio de atuadores está muito bem, afinados com a concepção, divertindo-se e nos divertindo. Verdade seja dita, a adaptação que fizeram de Macbeth é pouco sombria, como poderia sugerir o título do espetáculo, no sentido de que mesmo nos momentos de violência são encontradas soluções teatrais que não chocam as crianças, estas já acostumadas com a explicitude encontrada em filmes e games, muito mais aterradores do que o que se vê sobre o palco em Macbeth e o reino sombrio. Entretanto, ainda que amenizada e endereçada para um público infantil, estão presentes as discussões sobre o poder, sobre a ganância, sobre a morte como um passo em direção ao vazio, porém de maneira totalmente compreensível para qualquer público. Esse, em minha opinião, é um dos méritos do espetáculo, o que poderá fazer com que os jovens espectadores (talvez até os mais velhos) tenham curiosidade em descobrir e ler a versão original da peça de Shakespeare, o que contribui em muito com uma das funções da arte: abrir os horizontes do humano, mostrar outras possibilidades de apreensão da beleza (e do que é podre, como dizem as bruxas para Macbeth).
É incrível como uma peça escrita há mais de 400 anos pode fazer sentido hoje, para nós brasileiros. Penso na história do governante de um país, que é arrancado do trono por outro(s), pela ambição desmedida de ter para si o poder, e que para isso utiliza dos meios os mais escabrosos, até mesmo emendas parlamentares liberadas para a escrota base aliada. Mas o tempo passa, e esse que usurpou o reino será, tenho fé!, decapitado pelas forças democráticas, assim como Macbeth perdeu sua cabeça.