Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

ESPETÁCULO DO CURSO DE TEATRO DA UERGS VAI PARA SÃO PAULO


O Itaú Cultural lançou neste ano a convocatória a_ponte- Cena do Teatro Universitário, na qual poderiam se inscrever espetáculos produzidos em instituições superiores de ensino de Teatro de todo o Brasil, para participarem de uma Mostra do que de melhor se faz no teatro universitário do país. Foram 230 trabalhos inscritos, para que fossem escolhidos apenas 14 espetáculos, e entre eles está Nosso Estado de Sítio, da graduação em Teatro - Licenciatura da Uergs, o único espetáculo contemplado do Rio Grande do Sul, que se apresentará em São Paulo no dia 26 de janeiro de 2019. Neste link está o resultado com os 14 espetáculos selecionados de todo o Brasil: http://www.itaucultural.org.br/confira-os-espetaculos-selecionados-para-a-convocatoria-a_ponte-cena-do-teatro-universitario 

Nosso Estado de Sítio foi criado na graduação em Teatro - Licenciatura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, com direção do professor Dr. Marcelo Ádams e participação de 15 alunos em cena, além do próprio professor Marcelo que também atua na montagem. Os alunos foram provocados a identificar no texto Estado de Sítio, de Albert Camus, equivalências com a situação política que vivemos no Brasil e identificar doenças que afligem a população: ameaças de totalitarismo, retirada de direitos adquiridos, recuo nas políticas de direitos humanos e reconhecimento da existência de diversidade nos mais variados âmbitos da existência humana. 

O espetáculo recria a fábula de Camus: a chegada da Peste a uma pequena cidade litorânea traz consigo o autoritarismo e a violência. A proposta de nossa encenação é baseada nas ideias de coralidade e de um teatro de imagens, as quais se constroem nos corpos e com os corpos dos atores e atrizes. A partir de improvisações conduzidas, relacionadas aos conteúdos poéticos que se queriam alcançar, extraiam-se imagens e ações que pudessem ser desenvolvidas em direção a uma estrutura dramatúrgica. A montagem busca uma teatralidade escancarada, com soluções cênicas que não se propõem a reproduzir ações realistas, para que se concretize em cena uma poesia possível, surgida da expressão dos corpos e do desejo de usar a linguagem teatral como território privilegiado para falar do que é caro a esses jovens estudantes, nesse momento de indefinições extremas no que tange à manutenção de um regime democrático no Brasil. 

sábado, 29 de setembro de 2018

LEONARDO MACHADO, GRACIAS A LA VIDA

Essa imagem, de 2010, clicada por Júlio Appel, é de uma sessão de fotos para a divulgação da montagem do espetáculo Bodas de sangue, com texto do dramaturgo espanhol Federico García Lorca, que estrearia em Porto Alegre naquele ano, com direção de Luciano Alabarse e Luiz Paulo Vasconcellos. Aí estão Leonardo Machado, que atuaria como o Noivo, Sissi Venturin, que atuou como a Noiva, e eu, Marcelo Ádams, que atuei a personagem Leonardo (uma curiosa coincidência esse nome da minha personagem) - o triângulo amoroso fatal que põe a tragédia de Lorca em movimento. 
Léo não continuou no elenco (foi substituído por Fabrizio Gorziza), pois foi envolvido pela onda avassaladora de seu sucesso como protagonista do longa metragem Em teu nome, dirigido em 2009 por Paulo Nascimento, pelo qual ganhou o kikito de melhor ator no Festival de Cinema de Gramado. Ele foi chamado pela Rede Globo de televisão para participar de uma telenovela, o que inviabilizou sua participação na peça. 
Gracias a la vida, canção que se notabilizou com a voz de Mercedes Sosa, está no título dessa postagem porque desde 2009, sempre que a ouço, lembro do Léo. Foi assim: durante o Festival de Gramado daquele ano em que foi premiado, e no qual eu também estava com outro filme, Quase um tango, do querido Sérgio Silva, nos hospedávamos no mesmo hotel, o Serra Azul. Como sempre acontece nesses eventos em que artistas se encontram, a vontade de conversar e ficar juntos durante o máximo de tempo possível fazia com que varássemos algumas madrugadas, junto com vários outros artistas do Brasil todo, à volta da lareira do hotel, bebendo, conversando e cantando. Léo ficava algumas vezes com o violão, e ouvi dele que a canção que mais o emocionava era Gracias a la vida. E o ouvi tocar e cantar esse verdadeiro hino à vida.
Nesse momento tão triste, em que perdemos esse ator tão especial, a canção de Mercedes Sosa é totalmente adequada, e diz muito sobre a forma como Leonardo Machado viveu. A vida lhe deu muito: reconhecimento por seu trabalho, amigos e família que o amavam. O momento em que partiu nos parece tão precoce porque ele merecia, e nós merecíamos, mais tempo juntos. 

domingo, 2 de setembro de 2018

MACBETH E O REINO SOMBRIO

A tragédia Macbeth foi escrita em 1606 pelo inglês William Shakespeare (1564-1616), vindo a se tornar, com o passar do tempo, uma das mais celebradas e encenadas peças de seu autor em todo o mundo. A exemplo de quase todas as suas tragédias e comédias, em que adaptava ou utilizava como mote para servir de base para sua escrita as obras de outros autores, ou lendas, ou mesmo eventos históricos reais, Shakespeare aproveitou, nesta que também é conhecida como "the scottish play" (a peça escocesa), eventos ligados à vida de um rei escocês do século XI. O monarca Macbeth (1005?-1057) teria reinado entre os anos de 1040 (quando assassinou o então rei Duncan I em uma batalha) e 1057 (quando foi morto também em batalha, em 15 de agosto de 1057, por aquele que se tornaria, no ano seguinte, o rei Malcolm III, filho do usurpado Duncan I). 
A mais curta (e, portanto, objetiva no vertiginoso desenrolar da ação) e uma das mais violentas tragédias de Shakespeare (ainda que Hamlet e Tito Andrônico, por exemplo, compitam bastante bem nesse quesito), Macbeth se tornou um paradigma de boa composição dramática, expondo com brilho a ascensão e a queda de seu protagonista com riqueza de nuances psicológicas, assim como de sua coprotagonista Lady Macbeth. Em suma, a peça escocesa traz uma fábula sobre como a ambição pelo poder pode virar um ser humano pelo avesso, expondo aquilo de que se envergonha ou às vezes nem tem consciência que traz dentro de si. A maldade, a falta de empatia, o maquiavelismo (os fins justificam os meios) são temas que percorrem a narrativa escocesa, temperados - como o público de teatro apreciava no tempo de Shakespeare - com aparições sobrenaturais e de criaturas ligadas ao lado oculto e mágico da existência humana.
Adaptar Macbeth para sua proposta de encenar "Shakespeare para crianças", que o Coletivo Órbita desenvolve, se torna nada menos que um desafio, mesmo que essa palavra seja tão batida quanto vitamina de banana. Hoje em dia, 9 entre 10 entrevistados enfatizam o "desafio" que é atuar, escrever, dirigir, etc., etc. Com o perdão do uso que faço dessa palavrinha, acredito que neste caso específico autodesafio é a expressão adequada, pois não há facilidades em contar, em cerca de 45 minutos, a história de um homem que recebeu de três bruxas uma profecia de que seria o próximo rei e que, em colaboração com sua mulher: trama o assassinato do monarca em sua própria casa, assume o trono, manda matar todos aqueles que porventura possam ameaçar sua permanência no poder (inclusive crianças), é visitado pelo fantasma ensanguentado de sua vítima, e é finalmente morto em batalha e decapitado. Ah, e tudo isso para crianças assistirem e se divertirem.
Talvez o que tenha motivado o grupo a encarar essa tarefa tenha sido, além da admiração por Shakespeare, a trama específica de Macbeth, que em vários aspectos se cruza com a atmosfera encontrada na série estadunidense Game of Thrones - esta, sem dúvida, um dos maiores sucessos da TV mundial dos últimos anos, e que tem estimulado ficções que investem num tipo de ambientação medieval (até a Globo criou algo assim recentemente, na telenovela Deus salve o rei). O fato é que contar uma história que originalmente tinha 36 personagens com apenas dois atores e uma atriz, sem que tudo se torne confuso, apostando na ação dramática e não apenas na narração (como contadores de histórias poderiam fazer) para presentificar as situações shakespearianas, poderia ser um problema - mas se tornou, felizmente, uma boa solução.
Oriundos da Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul), os atores João Pedro Decarli (que é também o encenador deste trabalho) e Rodrigo Waschburger e a atriz Camila Pasa criaram o espetáculo Macbeth e o reino sombrio em uma disciplina de Prática em Direção Teatral do curso de Teatro - Licenciatura, sediado na cidade de Montenegro. Após o âmbito acadêmico, a peça ganhou o circuito comercial e vem realizando apresentações por cidades gaúchas desde 2017, chegando agora a Porto Alegre para uma breve temporada na Sala Álvaro Moreyra. Minha reação ao que vi foi de entusiasmo e de reforço à ideia de que um bom teatro se faz, na maioria das vezes, sem a exigência de uma grande produção em termos de riqueza de meios (falo daqueles meios que demandam consideráveis somas de dinheiro para serem possíveis), já que acredito serem os trabalhos de atuação e uma dramaturgia bem articulada os mais eficazes elementos que tornam a experiência da recepção teatral bem sucedida e prazerosa. 
Destaco, primeiramente, a excelente sacada que é contar a sombria trama de Macbeth em um espetáculo para crianças (embora, de fato, não seja apenas para os pequenos, pois me diverti bastante). A estratégia encontrada foi a de fazer transbordar a teatralidade: na alternância veloz entre personagens, que é imposta ao trio de atuadores para que possam dar conta de tantas figuras necessárias ao andamento da fábula; na aposta, sempre bem sucedida, no humor como chave da comunicação com os espectadores; no trabalho acrobático da atriz e dos atores, que demonstra qualidade e inventividade; na simples mas bem utilizada cenografia, composta por duas escadas articuladas, que tomam diferentes formas ao longo da peça, além de três grandes panos que criam um fundo para as ações, além de, em outros momentos, servirem como plataforma para cenas de teatro de sombras; no preciso jogo entre o trio e as propostas da encenação, já que esta  constantemente propõe a metalinguagem como recurso de empatia com o público. 
Sobre a cena, o trio de atuadores está muito bem, afinados com a concepção, divertindo-se e nos divertindo. Verdade seja dita, a adaptação que fizeram de Macbeth é pouco sombria, como poderia sugerir o título do espetáculo, no sentido de que mesmo nos momentos de violência são encontradas soluções teatrais que não chocam as crianças, estas já acostumadas com a explicitude encontrada em filmes e games, muito mais aterradores do que o que se vê sobre o palco em Macbeth e o reino sombrio. Entretanto, ainda que amenizada e endereçada para um público infantil, estão presentes as discussões sobre o poder, sobre a ganância, sobre a morte como um passo em direção ao vazio, porém de maneira totalmente compreensível para qualquer público. Esse, em minha opinião, é um dos méritos do espetáculo, o que poderá fazer com que os jovens espectadores (talvez até os mais velhos) tenham curiosidade em descobrir e ler a versão original da peça de Shakespeare, o que contribui em muito com uma das funções da arte: abrir os horizontes do humano, mostrar outras possibilidades de apreensão da beleza (e do que é podre, como dizem as bruxas para Macbeth).
É incrível como uma peça escrita há mais de 400 anos pode fazer sentido hoje, para nós brasileiros. Penso na história do governante de um país, que é arrancado do trono por outro(s), pela ambição desmedida de ter para si o poder, e que para isso utiliza dos meios os mais escabrosos, até mesmo emendas parlamentares liberadas para a escrota base aliada. Mas o tempo passa, e esse que usurpou o reino será, tenho fé!, decapitado pelas forças democráticas, assim como Macbeth perdeu sua cabeça.

sábado, 18 de agosto de 2018

19 DE AGOSTO, DIA DO ARTISTA DE TEATRO

19 de agosto, Dia do Artista de Teatro*

POR MARCELO ÁDAMS - PROFESSOR DA GRADUAÇÃO EM TEATRO- LICENCIATURA 
Quando se fala de "artistas de teatro", categoria dos profissionais que são celebrados no dia 19 de agosto, se está tratando de várias e especializadas funções que compõem o amplo espectro contido naquela denominação. Podem ser caracterizados dessa forma atores e atrizes, encenadoras e encenadores, dramaturgos e dramaturgas, mas também profissionais de cenografia, figurinos, iluminação, maquiagem e por aí vai, tão rica, agregadora e acolhedora é a arte teatral. Finalmente, e certamente com a mesma importância, está o professor de Teatro, que na maioria das vezes se encontra na gênese da formação da maioria dos profissionais antes citados. Partindo do pressuposto de que para exercer as funções complexas e criativas que fazem parte do universo teatral são necessárias técnicas e conhecimentos aprofundados, o professor de Teatro é, de forma privilegiada, o profissional que difundirá a tradição e buscará a inovação nas artes da cena.
O curso de Teatro - Licenciatura da Uergs forma professores-artistas que, uma vez inseridos no mercado de trabalho, terão uma função cada vez mais importante no mundo em que vivemos, no qual a crescente presença de tecnologias em nosso dia a dia nos conduz, muitas vezes, a um afastamento do contato humanizado, presencial. Poder-se-ia pensar: uma arte com uma história tão antiga como o Teatro, que já conta com mais de dois milênios de existência, ainda é relevante nesse planeta informatizado, conectado e virtual? A resposta é simples: a arte do Teatro tem a missão e o instrumental para proporcionar ao ser humano aquilo que a mais avançada das tecnologias não é capaz: o contato próximo com o artista, a reflexão crítica, o entretenimento, a empatia com o outro, a consciência da diversidade da nossa espécie, entre outras coisas. Um mundo crescentemente robotizado tem, no Teatro, um contraste vivo.
Formar professores de Teatro, como fazemos na Uergs, é entender que as micro ações influenciam o mundo macro. Uma professora de Teatro que trabalhe com crianças ou adolescentes não terá como objetivo último formar artistas, mas sim fazer ressoar em seus alunos uma experiência de incontestável valor humano e pedagógico: saber colocar-se no lugar dos outros, vivendo ou inventando personagens que, por serem diferentes de si, exercitam a consciência da alteridade. A socialização e o incentivo aos sentimentos de pertencimento a um grupo (ou a diferentes grupos) são duas das importantes contribuições que a arte teatral compartilha com quem se dispõe a partilhar dessa experiência. A vivência da/em arte, nas mais variadas formas, seja como praticante ou como espectador, é uma das alternativas mais eficazes para construirmos um mundo melhor a ser vivido em comum.
* Texto publicado originalmente no site da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul http://www.uergs.edu.br/artigo-dia-do-artista-de-teatro-19-de-agosto

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

AS TREVAS RIDÍCULAS

Uma questão que me interessa é: há real necessidade de tomar o texto dramático como ponto de partida e guia para a fruição de um espetáculo teatral? Outra maneira de lançar essa questão: por que boa parte dos que escrevem sobre teatro baseiam seus comentários em desdobramentos e especulações acerca do que o texto dramático traz em forma de palavras e sugestões de imagens que podem ser criadas a partir delas? Por que tomar o texto dramático como paradigma para uma encenação, respeitando (será que a palavra respeito se aplica?, e se se aplica, o que significa exatamente "respeito" em um contexto de criação artística?) e elegendo o autor das palavras impressas como o criador principal em uma encenação? Por acaso não sabemos (a maioria de nós, acredito) que, há pelo menos algumas décadas, o Teatro não se sente mais obrigado a eleger um "mestre espiritual" e, como uma escritura sagrada, seguir as indicações constantes em forma de rubricas e "formas de fazer" previamente estipuladas pelo dramaturgo? Por que a criação de um único indivíduo, o autor dramático, tem mais importância do que as criações de inúmeros outros artistas que compõem a equipe de um espetáculo cênico? Por que, ao modificar, incrementar, questionar, dialetizar, etc., um discurso no papel, os artistas da cena são apontados como traidores, ignorantes (por não terem "entendido" o texto?), desvirtuadores, entre outras denominações?
Ao assistir a um espetáculo teatral, tenho, como espectador, duas possibilidades: a de conhecer previamente o texto dramático, e a de não conhecer previamente o texto dramático. Uma vez conhecendo o texto, posso ter duas atitudes: a de ficar constatando, o tempo todo, a maneira como a encenação aproveitou o texto (na íntegra, com cortes, com modificações internas, provocando fissuras, rasuras, etc.), e me colocar como juiz do que é "respeitoso" ao dramaturgo, erguendo um muro entre mim e as cocriações de todos os outros artistas, considerando-as apenas como consequências necessárias da escritura "sagrada" do autor dramático; ou a outra atitude, a de dar ao texto dramático o seu devido lugar, que é o de um dos elementos de uma encenação, não o mais importante, não o do qual deriva todo o resto, não o guia infalível para a concepção cênica, e, desta forma, dar atenção ao que acontece na fricção entre esse texto dramático e os demais elementos vivos e plásticos da encenação. Que transformações se produzem nessas relações, quais novas possibilidades se criam nessa espécie de reação química que ocorre?
O espectador de um espetáculo teatral não é um crítico literário, embora ele possa agir como um, já que cada pessoa sentada na plateia tem o direito de "ler" a criação cênica que se lhe apresenta a partir do seu próprio horizonte de expectativa. Ou seja: eu leio com os olhos que tenho. Se sofro de miopia ou estigmatismo intelectual, isso influirá diretamente na minha recepção. Se escolho (ou, por outro lado, se não tenho outra saída, pois "nasci assim") eleger um ponto de observação, a partir do qual construo minha recepção ao que me é oferecido, estou, indubitavelmente, abrindo mão, conscientemente ou não, de outros inúmeros pontos de vista. Isso em si não é tão ruim, pois todos somos limitados como seres humanos, uns mais, outros menos, para algumas coisas, para outras coisas. O que me parece mais complexo, entretanto, na recepção de um espetáculo teatral, é que, justamente, ele é complexo, por ser constituído por uma série de contribuições artísticas. Não é como a literatura, por exemplo, que resulta do trabalho de um único autor, que detém, oniscientemente, os rumos da forma narrativa (embora jamais poderá controlar a maneira como essa forma será recebida pelos leitores). Lá vai: não se pode ver teatro unicamente com ferramentas da literatura, é preciso outras ferramentas, ou pelo menos, estar aberto para a experiência cênica que não é, de forma alguma, um texto dramático transposto, apenas.
Acaso me informo, quando vou ao teatro, das "características" de cada um dos atores que estão sobre o palco? Seria ridículo procurar saber qual é o peso, a altura, a capacidade pulmonar, a extensão vocal, o alongamento e a capacidade de atenção de cada ator, antes de vê-lo atuando, para depois poder dar um veredito de quanto de seu "potencial" ele empregou em cena. Se esse ator foi subutilizado, se ele não deu tudo de si, se na noite anterior ele bebeu demais ou brigou com seu amor, tudo isso eu teria como um critério de comparação para utilizar na apreciação do espetáculo? Se essa possibilidade é estúpida, então por que é imprescindível saber os antecedentes e a genealogia do texto? 
Mais um argumento, que para mim é irrefutável: o teatro é arte viva, e, assim como a dança, se constrói sobre o corpo vivo do performer. Essa é a pedra fundamental da arte teatral, por mais que em torno dela se amalgamem infindáveis outros elementos. Não há estrutura sem esqueleto, e o ator é o esqueleto do teatro. O movimento, a ação, a presença viva dos atores são (que aceitem isso os "literaturófilos") o que há de mais característico no teatro. Por mais fascinante e rico que seja um texto dramático bem construído, que auxilie os atores a mostrarem seres humanos agindo sobre um palco, a dramaturgia não pode ser mais do que é: justamente um auxiliar para o que realmente é o coração e a mente do teatro, o ator. Literatura no papel serve para ser lida, relida, retornando páginas e constatando minúcias possíveis apenas desta forma. O texto dramático sobre a cena é ouvido apenas uma única vez, o que denota sua importância dentro da estrutura espetacular. Não se podem colocar todas as fichas apenas no entendimento lógico da "historinha" que está sendo contada sobre o palco através das palavras do dramaturgo. Várias outras histórias são contadas, simultaneamente: há a dramaturgia do ator, a dramaturgia da luz, a dramaturgia do som, entre outras. Um espetáculo é uma sobreposição de dramaturgias, que seguem muitas vezes indiferenciadas, ou mixadas, não é inteligente eleger apenas uma delas como a guia fundamental. Mas se eu elegesse uma, com certeza não seria o drama como forma necessariamente impositiva. E digo isso não como um detrator da dramaturgia, mas como alguém que estudou o drama e a literatura em geral em nível de pós-graduação, que ensina literatura dramática na universidade, e que construiu todos os espetáculos da minha Cia Teatro ao Quadrado a partir de textos dramatúrgicos. Entretanto, nunca deixei de entender que fazer teatro não é só montar um texto.
Assisti ao espetáculo As trevas ridículas que, segundo o programa do espetáculo, foi "baseado na peça radiofônica" do alemão Wolfram Lotz. Estreado em maio de 2017, e integrando o Projeto Transit, no qual dois diretores de Porto Alegre foram convidados para encenar um mesmo texto, sob a idealização do Goethe-Institut, esta versão que assisti foi encenada por Alexandre Dill, com produção do Grupo Jogo (a outra versão foi batizada de Nas sombras do coração, com encenação de Camilo de Lélis). Acompanhei, em meados do ano passado, uma polêmica que se criou a respeito dessas encenações, e a partir da qual várias manifestações, às vezes agressivas, se tornaram públicas. Uma delas, se não me falha a memória, dizia respeito à escolha que uma encenação faz de explicitar, desta ou daquela maneira, o que um texto dramático traz em seu bojo. Ou seja: transformar palavras em imagens, que em última análise é uma das funções do teatro, desde sempre (há incontáveis maneiras de se fazer isso, evidentemente). E essa escolha que a encenação faz, de transformar quais palavras em quais imagens, me parece ser justamente o fundamento do Projeto Transit, caso contrário não teria sentido convidar dois encenadores para dirigirem o mesmo texto. Já era esperado que cada uma das equipes abordasse o texto de Lotz da maneira que considerasse "a sua melhor". E, no caso do projeto do Goethe em questão, foi fornecido o estímulo do texto radiofônico, como poderia ter sido qualquer outro: uma sinfonia, uma escultura, uma tela, um poema, uma árvore... A escolha de um texto escrito  como estímulo se justifica porque traz uma narrativa mais facilmente identificável, o que, levando em consideração que o teatro é reconhecido como uma arte que faz uso da narrativa, cenicamente, torna a transposição entre linguagens, teoricamente, menos conturbada.
O Grupo Jogo me surpreendeu com o resultado de As trevas ridículas, porque em minha opinião havia muitas dificuldades na transposição de uma peça radiofônica alemã que traz temas como colonialismo e pirataria. As obras primas, literária de Joseph Conrad (O coração das trevas), e cinematográfica de Francis Ford Coppola (Apocalipse now), que serviram como parâmetros/balizas para que o autor Wolfram Lotz desse luz a uma terceira coisa chamada Die Lächerliche Finsternis, poderiam resultar demasiadamente desafiadoras para que ainda uma outra possibilidade, desta vez cênica, criasse corpo. Minha surpresa, então, se deu no sentido de que fiquei bem impactado com o que vi sobre o palco do Teatro do Goethe.
A encenação de Alexandre Dill teve êxito em criar um outro universo, este, ficcional, no qual se movem as figuras corporalizadas pelos atores. E tal feito se dá, durante o transcorrer do espetáculo, não apenas como fruto da bem resolvida cenografia de Reynaldo Netto (minha leitura foi a de identificar a grande caixa que domina o palco com um contêiner, desses que os grandes navios de carga transportam pelos mares), mas em iguais proporções com o belo desenho de luz de Lucca Simas, que cria as trevas constantes que dão título ao espetáculo, utilizando dispositivos luminosos variados e muito eficazes; os figurinos de Manu Menezes, totalmente adequados à proposta da encenação; a direção musical de Bibiana Petek, que se aproxima do cinematográfico pela habilidade em construir "camas sonoras" para as cenas; e, sem dúvida, o trabalho dos atores.
Os cinco atores estão, felizmente, conectados com o estranhamento que o conjunto de estímulos sonoros e visuais promovem na percepção do espectador. Há algo levemente anuviado que ocorre, uma ironia, um sarcasmo tênue como um tecido voal, que torna atraente a atuação de todos. O bom trabalho dos atores, entre os quais incluo Vicente Vargas, Lucas Prado e Guilherme Conrad, ressalta Frederico Vittola e Gustavo Susin como duas formas quase opostas de atuação, que contribuem para o estranhamento positivo que ressaltei. Gustavo constrói seu principal momento no espetáculo - um monólogo que dura cerca de 20 minutos, logo no começo da encenação - em uma atuação vinculada ao que Josette Féral chama de "teatro performativo", ou seja, uma construção de corpo-voz que ultrapassa a composição física de uma personagem, no sentido de que apresenta uma diversidade de posturas e ações que envolvem objetos como um microfone de pedestal, uma folha de zinco (?) e um refletor. A alternância de planos espaciais nos quais se desenvolve o trabalho de Gustavo sugere por vezes uma animalidade que se adequa à crítica que é feita ao tratamento do pirata somali que lhe cabe atuar. A intensidade física que ele alcança, realçada pela dificuldade e pelo incômodo com os quais tem que lidar (como o calor excessivo provocado pelo refletor que ele segura próximo ao rosto) torna sua atuação viva, corporificando paralelos entre a figura ficcional e o ator.
Frederico Vittola, inversamente, compõe hábil e detalhadamente sua personagem, a de um militar do exército alemão em uma busca cheia de percalços no Afeganistão. Frederico tem sutileza e controle do tempo de sua atuação, inserindo pequenas ações que dão total credibilidade à personagem que criou. Há muito senso de humor em seu trabalho, e ele se torna o eixo em torno do qual os outros atores constroem suas atuações.
Poderia-se pensar que, em um mesmo espetáculo, soaria estranha a junção de duas formas de atuar tão contrastantes, como as de Gustavo e Frederico - isso se não estivéssemos em 2018, momento em que a ideia de unidade dramática já perdeu muito de seu sentido e de sua representatividade no cenário teatral. A tal da unidade não é alcançada pela uniformidade dos elementos, é muito mais ampla do que isso. Unidade, em minha compreensão, tem a ver com a verossimilhança que a proposta cênica apresenta, sendo que verossímil não tem ligação necessária com o real e o realista, mas com o que é proposto pela/para a obra. Talvez a palavra coerência faça mais sentido aqui, mas sem esquecer o conceito de "coerência incoerente" trazido por Eugenio Barba.
As trevas ridículas não é um espetáculo de excessos, atravessa as quase duas horas de sua duração em um ritmo constante, como o barco que desce o rio. Esse ritmo é modificado às vezes, o que na maioria das ocasiões funciona muito bem como uma transição para outra cena. Há uma única interrupção que considero não necessária para o espetáculo como um todo, que é justamente a maior delas, com o intervalo de 15 minutos entre o primeiro e o segundo ato, quando o engenhoso cenário é reconfigurado, criando novas áreas de atuação. Fica lindo, isso é verdade, mas quebra um pouco o andamento que vinha sendo proposto, além de que essa transformação ocorre já próxima ao final da encenação, não sendo tão aproveitadas as possibilidades cenográficas como poderiam.
Acompanho os trabalhos do Grupo Jogo, e dentre os que tive a oportunidade de assistir este me parece o que encontra um melhor equilíbrio entre o desejo de fazer a diferença em um trabalho calcado na fisicalidade e na intensidade emocional, e a sutileza e domínio dos elementos cênicos. Fiquei bem satisfeito!