Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

BRECHÓ DA HUMANIDADE

Uma das primeiras coisas que fizeram com que eu me conectasse com o Brechó da humanidade, o espetáculo que tem direção de Liane Venturella e atuação de Rudinei Morales, foi a frase que seu Bibico, a personagem vivenciada por Rudinei, pronuncia por duas vezes (com uma tradução ligeiramente diferente desta que agora escrevo): "Todos os sofrimentos podem ser suportados quando conseguimos transformá-los em histórias, ou contar uma história sobre eles". Esta frase, que seu Bibico traz como um de seus lemas, é de autoria da escritora dinamarquesa Karen Blixen (que usava o pseudônimo de Isak Dinesen), e se tornou largamente conhecida quando a filósofa judia alemã Hannah Arendt a utilizou como epígrafe de um dos capítulos de seu livro A condição humana. Pois bem, esta epígrafe de Blixen via Arendt também foi utilizada por mim quando encenamos o espetáculo Os homens do triângulo rosa, em 2014, que conta a história dos homossexuais perseguidos pelo nazismo nos anos que antecedem a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha: lá está, no programa do espetáculo, a frase que lembra que a memória é nossa aliada na tentativa de fazer com que atrocidades como essas não se repitam.
Mas não, talvez o que tenha feito com que eu me conectasse com o Brechó da humanidade pela primeira vez tenha sido a acolhida que recebemos nós, os propositalmente poucos espectadores, talvez 12, que aguardávamos o horário marcado para o início da "apresentação", em frente a um sobrado com visíveis sinais de decadência, na Rua Fernando Machado, Centro Histórico de Porto Alegre. Decadência essa perfeitamente ajustada à temática do Brechó da humanidade: a memória, esse conceito amplo, transdisciplinar e não facilmente definível. A memória, essa ruína que tentamos reconstruir, com a certeza prévia de que, se não desaba totalmente, pelo menos se mostra precária, provisória, enjambrada, para dar conta do vivido. A acolhida de seu Bibico, que perguntava os nomes dos que ali estávamos, cumprimentando com um aperto de mão e fazendo um esforço para memorizá-los, já que os usaria ao se dirigir a nós por diversas vezes, ao longo da próxima hora. Nessa espécie de "aquecimento" antes da encenação propriamente dita (ou pelo menos a parte que pode ser melhor programada, já que não depende da improvisação constante à qual o ator se propõe, interagindo com cada um de forma diferente, fazendo uma ou outra pergunta, reconhecendo um e outro), já aparece uma das marcas da encenação, que surge e desaparece em diversos momentos: a metalinguagem através do borramento entre a figura ficcional (o velho de 76 anos) e a figura "real" (o ator de 30 e poucos anos). Eis que, eventualmente, seu Bibico traz uma informação que faz parte do repertório do ator Rudinei Morales, e a incorpora à improvisação, afirmando que o Rudinei é o produtor do espetáculo e lhe havia contado tal coisa. Aliás, essa é outra situação esquiva: é ou não um espetáculo o que vemos? Na primeira camada, sim, é, já que há um ator, teatralmente caracterizado com um velho. Na segunda camada, me pergunto se seu Bibico está recebendo os "espectadores" para um espetáculo ou para uma visita com chá de jasmim em sua casa. Seu Bibico também é um ator, então? Tudo indica que sim, pois já acomodados no pequeno quarto que serve como espaço cênico, no terceiro pavimento do sobrado, ouvimos algumas vezes de Bibico/Rudinei que o espetáculo já vai começar.
E o que começa, enfim? Brechó da humanidade é chamado pelos autores de "teatro de objetos". Para mim, um nível mais sofisticado de teatro de objetos, pois não se detém apenas na sua antropomorfização, quando uma campainha e um sino, por exemplo, podem significar as - respectivamente aguda e grave - vozes dos filósofos Hannah Arendt e Martin Heidegger, duas das figuras que serão mencionadas na narrativa. Certamente nos ajuda, enquanto espectadores, o estímulo sonoro diferenciado que anuncia a alternância nos diálogos entre Arendt e Heidegger, já que acompanhamos assim com maior facilidade as posições de cada um deles. Em outros momentos entretanto, menos explícitos, mas ainda assim suficientemente claros para entendermos a relação entre significante e significado, temos pregos retorcidos que podem ser tanto simpatizantes do nazismo quanto as massas que viram as costas para o horror que se aproximava, na Alemanha de 1933. Ou os prendedores de roupa que, em sua indiferenciação característica, significam os corpos das vítimas assassinadas pelo Terceiro Reich. Rudinei não faz apenas teatro de objetos, mas teatro "com objetos", já que as ações de manipulação que se sucedem nem sempre ilustram exemplarmente o que o ator fala. Pode haver espaço para o contraponto entre imagem e narração, em que o estranhamento de determinado objeto, não necessariamente associado à situação contada, abre outras possibilidades interpretativas não previstas pela encenação. 
O risco de estereotipar uma figura como seu Bibico, um velho, na atuação de um jovem ator, é latente. Seria muito fácil escorregar na composição estilo Gepeto, com um velhinho bonzinho lembrando histórias. O trunfo é que Rudinei e Liane recheiam seu Bibico com alguma acidez, bom humor e senso político, o que dá à personagem ficcional muito carisma e verossimilhança. Não esquecemos que é teatro, pois lá do fundo Rudinei nos olha e nos interpela com um ótimo senso improvisacional. Premiado com o Açorianos de Melhor Ator de 2016, Rudinei nos entrega um trabalho em que não faz falta aquela famosa "grande cena", em que o ator explode em nossa direção. Mas nos conquista com sua composição atorial totalmente coerente, sutil, tecnicamente detalhada e, como escrevi antes, carismática.
Sobre a dramaturgia, entendo todo o conjunto, desde a abordagem na calçada até o momento em que nos despedimos da casa, na porta da rua. Há, nesse sentido, uma desproporção entre a narrativa da relação Arendt-Heidegger e a rápida menção ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975, pela ditadura militar brasileira. Suspeito eu que vem por aí um Brechó da humanidade 2, em que a história de Herzog, ou de qualquer outra vítima de desumanização, será contada com objetos. Já quero assistir.

sábado, 3 de dezembro de 2016

EU E CAIO FERNANDO ABREU

Caio Fernando Abreu (1948-1996) destacou-se, em sua produção literária, como contista, romancista e dramaturgo, além da profissão paralela de jornalista, que exerceu ao longo de sua carreira. Como autor de teatro, provavelmente a função menos conhecida por seu público leitor, em virtude de seu meio privilegiado de divulgação - o palco -, é que Caio entrou em minha vida, me aproximando desse que é um dos escritores mais cultuados do século XX brasileiro. Tive a satisfação de atuar em alguns espetáculos encenados a partir de textos dramáticos ou da adaptação de contos de Caio em quatro ocasiões, uma das quais estreará em 6 de julho de 2017, no Theatro São Pedro de Porto Alegre, com direção de Luís Artur Nunes: Caio do céu.
Em 2004, Margarida Peixoto encenou, como seu projeto de graduação em Direção Teatral no DAD (Departamento de Arte Dramática) da UFRGS, A maldição do Vale Negro, texto que Caio escreveu em parceria com seu grande amigo e parceiro de arte Luís Artur Nunes. Nessa divertidíssima homenagem ao melodrama, que Caio e Luís Artur localizaram na França de meados do século XIX, interpretei o Conde Maurício de Belmont, uma personagem ambígua em sua divisão entre atitudes mesquinhas e um coração generoso. Era delicioso extrapolar os limites do razoável ao encarnar o Conde Maurício, em uma composição física arrebatada e "procopiana":

Eu, o Conde Maurício de Belmont de A maldição do Vale Negro

Em fevereiro de 2006, na ocasião da efeméride de 10 anos de morte de Caio, Luciano Alabarse encenou uma adaptação para o palco do livro mais conhecido do autor nascido em Santiago (RS): o volume de contos Morangos mofados. Já o espetáculo Morangos mofados era a transposição cênica de alguns dos contos do livro, dos quais a foto abaixo é uma imagem de Caixinha de música:

Eu, o Homem de Morangos mofados

No mesmo ano de 2006, e também sob a direção de Luciano Alabarse, um dos grandes amigos que Caio teve ao longo da vida, tive a transformadora oportunidade de encenar seu último texto teatral, O homem e a mancha. Este tour de force para um ator (trata-se de um solo, em que o mesmo ator interpreta todas as cinco personagens: Ator, Miguel Quesada, Homem da Mancha, Dom Quixote e Cavaleiro da Triste Figura) rendeu-me o primeiro Prêmio Açorianos de Melhor Ator, e representou um mergulho profundo em meu trabalho de atuação, já que durante 2 horas de encenação eu precisava me desdobrar em todas as personagens que iam e viam, cruzando a narrativa fragmentária do texto de Caio, sempre com o fio condutor da figura enlouquecida do Dom Quixote de Miguel de Cervantes (na versão muito especial e provocadora de Caio, é claro):
Eu, como uma das muitas caras em O homem e a mancha

Minha mais recente incursão pela obra de Caio vem de uma forma muito especial. A convite de Deborah Finocchiaro, estarei em cena em Caio do céu, espetáculo que traz fragmentos de vários obras de Caio, com direção de Luís Artur Nunes, um dos grandes encenadores nascidos no Rio Grande do Sul e que, durante os anos 1970 e 1980, liderou o Grupo de Teatro Província, importante coletivo teatral de Porto Alegre. A partir de 1990, Luís Artur transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi professor da UFRJ, e continuou a encenar inúmeros espetáculos de grande repercussão artística. Em Caio do céu, minha participação será por meio de imagens projetadas, as quais foram gravadas com direção de fotografia de Bruno Polidoro, som de Leco Petersen, e montagem de Daniel Dode: 
Eu, um dos Companheiros em Caio do céu

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

TETRACONTÁGONO OU RAMAL 340- SOBRE A MIGRAÇÃO DAS SARDINHAS OU PORQUE AS PESSOAS SIMPLESMENTE VÃO EMBORA

O espetáculo do Coletivo Errática - agrupamento de artistas oriundos da graduação em Teatro: Licenciatura da Uergs, localizado na cidade de Montenegro -, que tem em Jezebel de Carli as figuras de aglutinadora e encenadora, é uma ducha de água fresca no panorama da produção teatral de Porto Alegre. A ducha que aparece em uma das cenas de Ramal 340- Sobre a migração das sardinhas ou Porque as pessoas simplesmente vão embora, é, assim, além de metáfora do estimulante resultado que o espetáculo alcança, uma metáfora da encenação. Mas não é a única. Dizer que a arte (e o Teatro, primeiramente) é o território privilegiado das metáforas é redundante, mas mesmo as redundâncias precisam ser ditas. Assim, uma das primeiras metáforas que me alcançaram ao vislumbrar a cenografia de Rodrigo Shalako foi a que associa a arquitetura cênica, composta fundamentalmente de páletes de madeira organizados de forma a comporem nichos, corredores, planos e desvãos, com a estrutura fragmentária, multiarestada e poliperspectívica da dramaturgia de Francisco Gick. Mais: as frestas da cenografia, onipresentes, materializam os interstícios da encenação de Jezebel, que homenageia ainda, em algumas cenas, uma de suas maiores inspirações, a francesa Ariane Mnouchkine - o eventual orientalismo de Les Atrides, ou o realismo revisitado de Les Ephémères. Os interstícios se colocam como proposições à complementação do espectador, para que este tente organizar (com a (in)certeza prévia do insucesso) as variadas linhas narrativas em uma visada atenta. Não que o espetáculo seja confuso, ou hermético, ou sequer "difícil": ele tão somente nos coloca a questão da coautoria no sentido de estimular nossa percepção a se colocar naqueles interstícios dos quais escrevi antes. Verborrágico como sói acontecer em grande parte da dramaturgia contemporânea, o espetáculo tem entretanto um feliz equilíbrio entre verbalidade e visualidade, graças às belas imagens que vão sendo construídas com o auxílio da linda iluminação de Lucca Simas, além das ações atoriais muito precisas e consequentes ao universo que o espetáculo desenha. Sem o sarcasmo e a ferinidade entrevistas em Hotel Fuck: Num dia quente a maionese pode te matar, que Jezebel encenou em 2010 no seu grupo "paralelo", a Santa Estação, Ramal 340 traz uma encenação ainda bastante calcada na fisicalidade e no ritmo intenso de atuações e mudanças de cena, mas quero crer que há um "apaziguamento narrativo", que em minha opinião é bem vindo e agrega importantes qualidades ao seu trabalho. Certamente conta pontos no resultado positivo alcançado a evidente afinidade dos atores com a encenação. Não há quase nenhuma artificialidade na elocução dos textos, e acredito e entendo o que ouço e o que vejo. O elenco tem em Diogo Rigo, Francisco Gick, Guega Peixotto, Gustavo Dienstmann, Luan Silveira e Nina Picoli um resultado qualificado e de brilho, o que me deixa ainda mais satisfeito, visto que todos eles foram ou ainda são meus alunos na Uergs.
Certamente o texto dramático tem um desafio extra, em comparação a um conto, romance ou poema, que é a impossibilidade de ser ouvido de novo, no aqui-agora da encenação: um espirro dado pelo espectador pode significar a perda da informação de quem era o homem que Édipo matara indo para Tebas! Brincadeiras à parte, um texto como o de Francisco Gick não se absorve até a última ponta, como outros tipos de dramaturgia mais estável: aqui, compreende-se também por inferências e ilações. Uso, por fim, a imagem do tetracontágono, um polígono de 40 lados na geometria, inspirado no que é dito por duas vezes no espetáculo: que atualmente o mundo tem pelo menos 20 guerras diferentes acontecendo nos mais variados pontos do planeta, com 40 lados diferentes digladiando por...pelo que mesmo é que eles lutam? Qual é o nosso lado? Ramal 340 é um tetracontágono por nos oferecer uma variedade de abordagens interpretantes, conforme variemos o ângulo que adotemos para observá-lo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

IEL PROMOVE HOMENAGEM A IVO BENDER NA FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE

No dia 5 de novembro participei de uma mesa-homenagem ao nosso maior dramaturgo, Ivo Bender, que em 2016 completou 80 anos de idade. No evento, organizado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, e realizado dentro da programação da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, pudemos, durante cerca de 1h30min, falar um pouco sobre a obra e a convivência pessoal com o Ivo. Junto comigo estavam Mirna Spritzer, Diones Camargo, Cintia Moscovich (patrona da Feira neste ano) e o próprio Ivo Bender, além de uma plateia atenta e carinhosa. A Sala Oeste do Santander Cultural sediou essa merecidíssima homenagem, que recebeu o título de "Ivo Bender: Dramaturgo e Narrador", fazendo referência às suas incursões autorais no texto dramático e no conto.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

IVO BENDER E OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA: 2 ANOS DE TRAJETÓRIA



Hoje, dia 10 de outubro, a Cia Teatro ao Quadrado está especialmente feliz, porque completamos 2 anos da estreia de nosso espetáculo Os homens do triângulo rosa. A primeira vez que tivemos contato com o caloroso e emocionado público que vem nos prestigiando nesses 24 meses foi em 10 de outubro de 2014, no magnífico Theatro São Pedro, aqui em Porto Alegre. Naquele momento, não tínhamos ideia da belíssima trajetória que teríamos com esse espetáculo, que tem nos dado tantas alegrias e proporcionado debates e reflexões tão pertinentes no contexto de violência e intolerância à diversidade no qual estamos mergulhados. E temos o desejo de que esses 2 anos sejam a caminhada inicial desse trabalho que nos envolve tanto, e que já nos presenteou com inúmeros momentos inesquecíveis. Dentre os memoráveis, destaco a viagem que realizamos em julho de 2016 para o Nordeste brasileiro, com o patrocínio da Petrobras, quando pudemos realizar apresentações em Maceió e João Pessoa.
Agora, às vésperas do aniversário de 2 anos, tivemos a imensa satisfação de contar com a presença de Ivo Bender nos assistindo. Com grande generosidade, Ivo nos dedicou um lindo texto em que fala de nosso espetáculo. Não poderíamos ter recebido melhor presente do que esse. Obrigado Ivo!
Aqui está o texto que Ivo Bender escreveu:

Os homens do triângulo rosa 
Ivo Bender
"Há muito tempo venho acompanhando o movimento teatral de Porto Alegre. Nem sempre, porém, sou surpreendido pela qualidade de uma encenação. Assim sendo, saúdo Margarida Peixoto e Marcelo Ádams pela iniciativa de encenar Os homens do triângulo rosa. A dramaturgia da peça resulta da seleção e soma de textos de Martin Sherman, Rudolf Brazda e Jean-Luc Schwab.        
Margarida Peixoto e Marcelo Ádams, ambos de sólida formação literária e cênica, firmam-se a cada novo trabalho. Deve-se frisar que nem Marcelo nem tampouco Margarida praticam a equivocada fórmula que afirma que “o texto é tão só um pretexto para a encenação”. Ambos devolvem ao texto dramático o devido lugar entre os demais elementos teatrais. Desse modo, fica muito claro o que Margarida nos diz ao longo de sua encenação. Considerando o minimalismo dos acessórios cênicos que impera no espetáculo - uma cadeira, uma cerca de arame eletrificada e dois montes de pedras de arenito rosa - pode-se concluir que o texto e a interpretação reassumem aqui seu papel. Assim, a economia nos acessórios cria um vazio que logo será ocupado pela atmosfera pesada do terror nazista. No regime de Hitler, ciganos, intelectuais de esquerda, judeus  e homossexuais vão compor a massa humana a ser trucidada pelo programa “Solução final”.
Margarida e Marcelo tiveram extremo cuidado na escolha e preparação do elenco. O grupo de atores é homogêneo na correta e eficiente criação das figuras. Antônio Rabadan cria não apenas a roupa dos prisioneiros, mas se supera no requinte do figurino de Gisela Habeyche: brilhos e panejamentos preciosos que, somados à sua voz potente e afinada, a transformam em uma presença luminosa onde reina a treva.   
No elenco ainda estão Frederico Vasques, Pedro Delgado e Edgar Rosa, todos marcados por eficiente desempenho. Marcelo Ádams, em criação sensível e irretocável, encarna Max, a personagem central. Ádams emociona e não deixa o espectador ficar alheio à angústia de sua personagem. Já Gustavo Susin cria com a agilidade do corpo e toques de humor a inesquecível figura do bailarino. E Alex Limberger encarna o capitão lascivo e homicida que dirige o campo de extermínio. Na sua interpretação, Limberger oferece a imagem dos algozes.   
A cenografia  traz a assinatura de Yara Balboni e a música ao vivo tem o belo desempenho da musicista Elda Pires.
Finalmente, estamos todos de parabéns por termos esse espetáculo entre nós. E, certamente, se Baco ainda habita o Olimpo ou perambula por entre as ruínas de Delfos, ele virá aplaudir Os homens do triângulo rosa, que volta ao cartaz no verão de 2017."

  
         
    

terça-feira, 4 de outubro de 2016

PORTO ALEGRE: ESPEREM O BARÍTONO

Quando se pensa em ópera, esse gênero grandiloquente que envolve - pelo menos - música, teatro, dança, literatura e cenografia, é o clichê das prima donas fisicamente opulentas que vem à mente quase imediatamente. Clichê este já superado pela prática, visto que a ópera contemporânea se deslocou consideravelmente desse modelo oitocentista e novecentista: nas últimas décadas se veem cada vez mais grandes encenadores como Bob Wilson, Romeo Castellucci ou Gerald Thomas contribuindo para a quebra de alguns paradigmas operísticos (dentro os quais a obesidade dos solistas e a cafonice cenográfica). Outro ponto a ser considerado é a continuidade na criação de óperas, assinadas por autores mais próximos de nós, cronologicamente. Obviamente, obras-primas de Mozart, Rossini, Verdi ou Wagner continuarão sendo encenadas, às vezes de forma clássica, às vezes provocativamente inovadoras. Por outro lado, vêm sendo compostas a partir do século XX óperas que se afastam (novamente, o paradigma) das estruturas narrativas tradicionais, nas quais o enredo trágico, com traições de variados tipos, adultérios e crimes de sangue faziam a alegria dos compositores e libretistas. Vemos, em direção oposta, por exemplo, Einstein on the beach, ópera composta por Philip Glass em 1976, para ser encenada por Bob Wilson.
Tive a excelente oportunidade de encenar, ao lado de Victoria Milanez, uma ópera nos moldes mais clássicos. Foi em 2005, a convite do Instituto de Cultura Musical da PUCRS, que recriamos a conhecida ópera verista I pagliacci, do compositor italiano Ruggiero Leoncavallo, com regência do saudoso maestro Frederico Gerling Júnior. A experiência de coordenar um verdadeiro batalhão de pessoas, entre coro e solistas (cerca de 90 pessoas em cena), me fez admirar o esforço hercúleo envolvido numa encenação deste tipo, ainda mais considerando a minguada tradição que a ópera tem em nosso país.
O não tão surpreendente mas decididamente infeliz resultado da eleição majoritária do dia 2 de outubro de 2016, em grande parte dos municípios brasileiros, não é uma tragédia, não nos moldes clássicos como o da opéra-comique Carmen, de Bizet, ou La Traviata, de Verdi, ou ainda Tristão e Isolda, de Wagner, que têm em comum o final infeliz representado pela morte dos protagonistas. Mas que há algo de trágico na eleição de João Dória para prefeito de São Paulo, no primeiro turno, há. E a tragicidade do embate a ser travado no segundo turno das eleições em Porto Alegre, entre Sebastião Melo e Nelson Marchezan Júnior, salta aos olhos. Como pudemos deixar que as coisas chegassem a esse ponto? Escolher entre a cruz e a caldeirinha parece muito mais A escolha de Sofia do que uma alternativa razoável.
O escritor Elio Gaspari menciona em seu livro A ditadura envergonhada (Companhia da Letras, 2002) uma frase dita pelo primeiro dos generais golpistas que governaram o Brasil após 1964, Castello Branco. No momento de sua saída do Planalto para dar lugar ao próximo arremedo de ditador - desta vez um gaúcho de Taquari, Arthur da Costa e Silva, que assumiu em 1967 -, Castello teria feito uma piada operística, testemunhada por Ernesto Geisel, entre outros. No chiste, um tenor de ópera é vaiado pela plateia durante sua apresentação, mas ao final dela, respondendo aos vaiadores, ri e solta a bomba: "Esperem o barítono".
Não considero que a solução para o impasse em Porto Alegre seja votar nulo ou em branco. Velho argumento, mas ainda válido: não se posicionar é concordar com o que outros decidirão. Como protesto, será de efeito irrisório: alguém tem dúvida de que os políticos que nos governam sabem que estamos descontentes? Não muda nada ficar emburrado e cruzar os braços. Eu, por mais que me sinta revoltado com a perspectiva que se apresenta entre Melo e Marchezan, não vou deixar que outros decidam. Tenho suficiente clareza para discernir, entre um e outro, dos males o menor. Sebastião Melo é a continuidade de um governo Fortunati absolutamente ineficaz. Mas Marchezan é o tiro no escuro, é dar poder a um homem que é unanimemente considerado como desequilibrado, arrogante e elitista. Não posso concordar com essa possibilidade. Marchezan pode ser o Collor de Porto Alegre, escondido por trás de uma boa aparência e de uma eloquência admirável.
Votar em Melo é, talvez, continuar ouvindo um tenor desafinado. Mas votar em Marchezan é ter nos assombrando um barítono descontrolado, que já está dobrando a esquina.

sábado, 30 de julho de 2016

A MECÂNICA DO AMOR

No Hamlet de William Shakespeare, em determinado momento da cena II do ato II, ocorre uma situação rica em possibilidades de prospecção de camadas de significados. Trata-se da cena em que Polônio relata ao casal real Cláudio e Gertrudes acerca do estado mental do príncipe Hamlet, que - Polônio assim considera - está fragilizado pelo amor que o jovem herdeiro da coroa dinamarquesa dedica à doce Ofélia, justamente a filha mais jovem do relatante. Para demonstrar sua tese, Polônio vale-se de uma carta escrita por Hamlet a Ofélia, e que se encontra em seu poder. Sabemos assim, não a partir da ação dramática, mas, pode-se dizer, através da narrativa épica, dos sentimentos de Hamlet da forma mais precisa possível - ou seja, por suas próprias palavras, registradas na missiva. Então Polônio lê em voz alta:
Duvide que a estrela é ardente,
Duvide que o sol levanta,
Duvide que o sincero mente,
Mas não que meu amor é franco.
Oh, querida Ofélia, não sou bom em versos. Não tenho arte para dar forma aos meus gemidos. Mas que te amo tanto, mas tanto mesmo, acredite nisso. Adeus. Teu para a eternidade, caríssima senhora, enquanto essa máquina lhe pertencer, Hamlet.

O que chama atenção nessa breve declaração de amor, que será, ainda na mesma cena II, totalmente contraditada com a violência pela qual Hamlet expurga Ofélia, é o uso da metáfora da máquina para falar do corpo humano, essa "máquina desejante", como Deleuze a chamará no século XX. Também vale a pena mencionar que o filósofo francês René Descartes trará a ideia do corpo-máquina, porém apenas no século XVII, mais de um século após o belo achado imagético de Shakespeare. Finalmente, nos anos 1970, o alemão Heiner Müller batizará de Hamletmaschine um de seus mais conhecidos textos.
Quando ouvi pela primeira vez o título do novo espetáculo escrito e dirigido por Júlio Conte, não me ocorreu que a menção à mecânica se relacionava mais explicitamente a uma oficina mecânica, e não às engrenagens da existência. Ainda mais quando associada a mecânica ao amor, lembrar do Hamlet fez para mim todo o sentido. Então, no decorrer do espetáculo que assisti na estreia, fui tentando juntar a minha expectativa prévia com o que eu via sobre o palco, e descobri que é possível fazer aproximações entre a máquina a que se referia Hamlet com a mecânica do Júlio Conte.
Em destaque está a relação entre os dois mecânicos vividos por Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio. Uma relação de amizade, em primeiro lugar, de coleguismo na profissão, em seguida, e, finalmente, uma relação de poder, já que um é "chefe" do outro. O chefe/dono da oficina - batizada, um tanto bizarramente de "Mecânica do amor" - demonstra ser o prático da oficina, aquele que domina a tecnologia através de seu laptop da Apple. Seu empregado é o clássico rústico, quase estúpido em sua total inaptidão para apertar os botões do computador. No entanto, demonstra uma maior "inteligência emocional", mesmo que enviesada e seguidamente machista. Nada a criticar, já que existem homens assim, e o que a dramaturgia faz é mostrar isso. Ambos, patrão e empregado, passam a maior parte do tempo "enchendo linguiça", sem "colocar a mão na massa", ou seja, mais conversam e trocam impressões sobre o mundo do que são produtivos no trabalho. E quando me refiro à visão de mundo que ambos projetam, explicita-se mais exatamente do que as duas personagens são reféns: de uma perspectiva sexista, em que na maior parte do tempo se colocam "eles" em oposição a "elas", como duas espécies pouco semelhantes, com o aditivo de que "elas" devem ser decifradas, tal a separação que se constrói entre os dois gêneros. Passo a compreender a ideia da mecânica do título mais no sentido de engrenagem shakespeariana. O amor como uma engrenagem dentro de uma outra engrenagem (o corpo humano), dentro de uma outra engrenagem (o papel social de cada um de nós). Reféns são os dois mecânicos dentro da engrenagem masculina, que normatiza um comportamento, com seus códigos bem conhecidos pelos indivíduos do sexo masculino; códigos que passam pela ojeriza/deboche da homossexualidade, através da afirmação da masculinidade pelo tamanho do pênis e pela frequência com que se faz sexo: é preciso provar reiteradamente o pertencimento à irmandade do falo (ereto!) com essas afirmações subliminares de macheza. Os dois mecânicos são máquinas, não de amar, mas de reproduzir; "os homens que copiavam", parafraseando o filme de Jorge Furtado, que copiavam comportamentos estabelecidos, como o do velho Caneta, metalinguisticamente representado por uma fotografia do próprio Júlio Conte, em uma cameo role à la Hitchcock. Aliás, é perfeita essa aparição do Júlio justamente como o patriarca, o macho alfa do macharedo, para reforçar minha hipótese.
Realmente o título do espetáculo não contempla tudo que ele entrega. Não se fala quase de amor, a menos que se considere a amizade como um tipo de amor, mas neste caso seria mais adequado batizar de A mecânica da amizade. A entrada de outras duas personagens, interpretadas pelos mesmos atores, em uma subtrama que trata de delação premiada, corrupção e traição de confiança, vem como um contraponto mais denso e um pouco nebuloso da anterior situação predominante. E esse depositar de confiança no discernimento dos espectadores é, novamente, apontado pela metalinguagem, quando Fabrizio e Lucas, os atores, questionam se o público vai entender o que está acontecendo. Aparentemente sim, entendemos.
Todas essas observações são integrantes da minha satisfação, em resumo, de ter assistido ao espetáculo. Fiquei especialmente contente pela declaração de Júlio em defesa da arte cênica como saída possível para um mundo melhor, pelo organicíssimo jogo entre os atores, e pelo trabalho de atuação de Fabrizio Gorziza. Não posso deixar de referir que Fabrizio começou fazendo teatro, há mais de 10 anos, em uma oficina da Cia Teatro ao Quadrado com direção da Margarida Peixoto e texto meu. Também foi por nosso intermédio que Fabrizio fez seu primeiro trabalho profissional em teatro, justamente o Hamlet dirigido por Luciano Alabarse, em 2006. Depois, fui colega de palco de Fabrizio em vários espetáculos, e agora, vendo um ator maduro, cheio de recursos, inteligente cenicamente, fico orgulhoso e na expectativa de voos ainda mais altos. Sobre a encenação do Júlio, me alegra essa mescla entre um teatro mais clássico, aristotélico, com piscadelas pós dramáticas, que tornam a assistência prazerosa e vívida. Soluções simples e criativas, um investimento claro no trabalho dos atores, e uma vontade de falar do mundo atual, mesmo que essa escolha ponha em risco algum tipo de "unidade" dramática. Correr riscos é assim. Fazer teatro é correr riscos. E fazer teatro sem incentivos, a não ser o auto incentivo, que nos faz acreditar que arte é importante, e que precisamos exercê-la para sentirmos "que estamos de volta". Júlio não tinha saído, sempre esteve aqui, no bloco daqueles que constroem e ajudaram a construir a história do teatro em Porto Alegre.


sexta-feira, 29 de julho de 2016

DESCIDOS

Uma das imagens preferidas da iconografia dos séculos XV ao XVII era a descida de Cristo da cruz, após a crucificação. Por ser uma época em que, para sustentar-se, os artistas necessitavam do mecenato de nobres e da Igreja, eram frequentes e comuns os retratos de autoridades eclesiásticas e da aristocracia, que podia pagar pelo luxo de verem-se registrados em tela pela sensibilidade dos maiores artistas daquele tempo. Pelo mesmo motivo, contratavam-se esses artistas para pintar ou esculpir cenas retiradas do velho e do novo testamento, para decorar capelas, nichos ou aposentos dos contratantes. É lindo comparar algumas dessas cenas nas versões de diferentes artistas, como a Anunciação, a Santa Ceia, ou a já citada descida da cruz. Para efeito de estudo de volumes, linhas e texturas, coloco aqui uma inusitada comparação entre algumas descidas da cruz e uma fotografia clicada por Adriano Arantos, talentoso fotógrafo e músico que nos acompanhou por Maceió e João Pessoa em nossa recente turnê de Os homens do triângulo rosa pelo Nordeste brasileiro, que contou com o patrocínio da Petrobras. Adriano captou um lindo momento de expressividade dos atores, que associo às descidas da cruz da tradição pictórica ocidental.
 Adriano Arantos, Os homens do triângulo rosa, 2016

Antônio Nogueira, Descida da cruz, 1564

Rogier van der Weyden, Deposição da cruz, 1435-38

Rubens, A deposição da cruz, 1610-11

Giorgio Vasari, A deposição da cruz, 1540

sábado, 2 de julho de 2016

OS DOIS GÊMEOS VENEZIANOS

"Más vale trocar pracer por dolores que estar sin amores". Este é a frase inicial da canção do espanhol Juan del Encina, escrita provavelmente entre o final do século XV e o começo do XVI, e que é apresentada de forma belíssima em um coro de cinco vozes em determinado momento da encenação de Suzi Martinez de Os dois gêmeos venezianos. A montagem da Trupe Giramundo para o texto do italiano Carlo Goldoni, escrito em 1747 ou 1750, mostra que não há nenhum empecilho em misturar línguas e épocas, ao contrário: a mestiçagem enriquece a raça.
Goldoni é considerado um dos grandes autores da língua italiana, ao lado de Dante, Boccaccio, Maquiavel, Fo, Pirandello, e por aí vai. Sua biografia é ligada irremediavelmente à commedia dell'arte, gênero que cultivou e negou, alternadamente, durante toda sua vida. Se nas primeiras décadas do século XVIII, paralelamente aos seus estudos em Direito (feitos para agradar ao pai), Goldoni escreveu canovacci (roteiros arejados sobre os quais os atores improvisavam e compunham a cena no calor da representação) para servirem de mote aos comediantes dell'arte, chegou um momento em que não mais o satisfizeram as características próprias do gênero, tais como a estilização e a tipificação sugeridas pelo uso das máscaras, a intriga convencional com figuras bem divididas entre as categorias da commedia dell'arte, como os velhos, os enamorados e os criados, e até mesmo as práticas recorrentes das intrigas, como o fato dos criados surrarem os amos para extrair o riso. Goldoni passou a considerar que a nova arte dramática italiana deveria passar pela arguta observação dos costumes da época, para que, de forma mais "realista", chegasse a um reflexo preciso do mundo em que vivia. É curioso comparar essa ambição de Goldoni com o que Molière fizera várias décadas antes na França, quando, ao eleger tipos característicos para suas críticas, como o avarento, o hipocondríaco, o médico charlatão e o pseudo-intelectual, os fazia cercar de figuras de evidente inspiração "commediadell'arteana", como serviçais, criados, jovens enamorados e pais turrões. E Molière conseguiu essa proeza sendo ao mesmo tempo socialmente crítico e convencional.
Quando Goldoni escreveu sua primeira peça "completa", quer dizer, uma em que cada palavra seria pronunciada pelos atores, sem espaço para o improviso textual, abriu-se uma possibilidade rica: fixar, pela primeira vez em textos mais complexos, as máscaras da commedia dell'arte, que anteriormente só viviam de forma fragmentária nos canovacci. O mais conhecido exemplo dessa vertente, e também o mais famoso texto de Goldoni, é Arlequim, servidor de dois amos, de 1745, além do já referido Os dois gêmeos venezianos. Como a intenção aqui não é biografar Goldoni, retorno ao motivo deste escrito: a encenação desta obra, realizada de forma bem sucedida em Porto Alegre, e pelo que sei, pela primeira vez aqui.
Utilizando o bom e velho artifício dos gêmeos que confundem e são confundidos para arrancar o riso, empregado desde a Roma antiga por Plauto em Os menecmos, ou por Shakespeare em A comédia dos erros, são apresentadas conhecidas figuras da comédia à italiana, entre elas Arlequim, Doutor, Capitão e Colombina. Outras, como Rosaura, Beatriz e Fabrício, são filhas do gênero, alguns dentre os tantos nomes que os enamorados recebem nessa estrutura convencionalizada. Portanto, dramaturgicamente, há pouca novidade e ineditismo na abordagem da trama; exceção mencionável é a morte de um dos mocinhos e do vilão, antecedendo o final feliz: há aqui, efetivamente, um dado novo nas edulcoradas tramas românticas associadas ao gênero. A Trupe Giramundo deita, rola, pinta, borda, canta, dança e chega perto de comover ao espectador mais atento ao tema que, em minha opinião, subjaz à alegre e descompromissada encenação: o teatro em si.
O teatro do século XXI, assim como o de outros momentos do século anterior, se coloca frequentemente a obrigação de tratar de assuntos e temas ferozes, atuais, socialmente relevantes, denunciadores do estado das coisas, críticos, etc. Nada mais necessário, afinal, quem foi que disse que o teatro efetua [pode efetuar] a crônica de seu tempo? Já que cada espetáculo é arte viva que só acontece uma vez a cada vez, e perante aqueles poucos que ali estiveram, o teatro se mostra adequado para retratar a passagem das coisas: do tempo, dos costumes, das ideias. A ânsia que sofremos de fazer a diferença, de mudar o que não concordamos, de melhorar o que está ruim, leva os teatreiros a buscarem o incêndio dos assuntos necessários: concordo com isso, já que considero essa uma das funções do artista. Mas: espetáculos como Os dois gêmeos venezianos percorrem um outro caminho, belo e importante: ao fazer esse tipo de teatro, tematiza o próprio ofício, mesmo que não explicitamente. Poderia eu diferentemente encarar essa declaração de fidelidade e devoção ao teatro, representado pelo extremo preparo dos atores desse elenco, que se desdobram em músicos e contrarregras? Poderia eu deixar de me sentir cúmplice das dificuldades comuns à produção de uma encenação ambiciosa como esta - ambiciosa no melhor sentido possível, aquele que traz o significado de superação de obstáculos financeiros, artísticos e outros tantos? Poderia eu descrer da vontade entrevista nos corpos e vozes de cada um sobre o palco, garra envolta talvez não nos melhores e mais caros tecidos ou nos materiais mais reluzentes, mas em simples algodão, que absorve o suor que todos derramam para nos divertir? O trabalho de atuação de cada um cuidadosamente composto, ensaiado, articulado, medido: prova de amor. A alegria que vai chegando aos poucos aos atores: no início ainda um pouco frios, mas que vão se aquecendo progressivamente e puxando os olhares e a atenção para tudo que fazem sobre o palco, e quando me dou conta, tudo ferve. Guilherme Ferrêra, Henrique Gonçalves, Juliana Barros, Luciano Pieper, Marlise Damin, Paulo Brasil e Suzi Martinez encontram, cada qual em sua máscara, a abordagem precisa para tornar a atuação vívida e engraçada. O destaque é coletivo, pelo entendimento da linguagem escolhida, pelo toque pessoal que cada ator acrescenta à máscara que porta. Quero, ainda assim, falar do trabalho de Henrique Gonçalves, o Arlequim. Não é à toa que essa personagem tem tanto prestígio, pois ao mesmo tempo que se mostra exigente para quem se propõe a atuá-lo, o Arlequim proporciona ao seu "cavalo" uma infinita possibilidade de jogo cênico. Henrique defende muito bem sua parte, tem uma agilidade admirável, uma voz carismática e grande habilidade para criar deliciosos lazzi: é bom esse guri!
Sobre o palco e fora dele, a diretora Suzi Martinez traz com sucesso, segurança e conhecimento das convenções um espetáculo para se rever: eu mesmo escrevo este texto depois de ter assistido pela segunda vez. Se a Trupe Giramundo se dispuser a manter em repertório esse espetáculo, estou certo de que há ainda muitas alegrias no caminho.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

OS HOMENS DO TRIÂNGULO ROSA EM MACEIÓ

O espetáculo Os homens do triângulo rosa, que estreou em Porto Alegre em outubro de 2014, está sendo preparado para, pela primeira vez, ser apresentado fora do Rio Grande do Sul. Graças ao patrocínio da Petrobras, que através da Lei Rouanet selecionou espetáculos de todo o Brasil para circularem de Norte a Sul do país, levando cultura, arte e diversidade às mais diferentes regiões, e incentivando a troca de conhecimentos, além de investir na economia da cultura, poderemos percorrer esses quase 4.000 km que separam Porto Alegre de Maceió. 
Em Maceió, nos apresentaremos no lindo Teatro Deodoro, inaugurado em 1910. O site do teatro informa que "é composto de uma Sala de Espetáculos em estilo neoclássico com palco italiano, frisas, camarote e poltronas - tem capacidade para 690 lugares. A boca de cena mede 9,30m x 7m; a profundidade de palco tem 12m; a altura do urdimento (travejamento do teto e dos sótãos sobre o palco) é de 10m; o proscênio (distância entre o palco e a plateia) é de 1,80 m e é reto. O porão do palco é onde fica o cenário; o teto da Sala de Espetáculos é original, feito de placas de ferro e com motivação em alto relevo, bastante agradável, e de cuja parte central pende um belíssimo lustre antigo de cristal".
Repare na cor da fachada do teatro: ROSA
Quem ousaria afirmar que o Teatro Deodoro não é perfeito para nosso espetáculo?


sábado, 21 de maio de 2016

IVO BENDER: BIBLIOGRAFIA

Para comemorar os 80 anos de vida de Ivo Bender, completados no dia 23 de maio de 2016, coloco aqui as capas de todos os livros publicados por ele, tanto as obras teóricas quanto as de ficção, incluindo os volumes em que traduziu Racine e Emily Dickinson. Os livros se encontram atualmente fora de catálogo, o que não é de se estranhar, infelizmente, já que o mercado editorial brasileiro não tem interesse em obras como a que Ivo construiu. Alguns dos títulos abaixo relacionados são realmente raros, desaparecidos até mesmo dos sebos. Afortunadamente, tenho em minha biblioteca todos eles.

 

sexta-feira, 13 de maio de 2016

IVO BENDER COMPLETA 80 ANOS

No próximo dia 23 de maio, Ivo Cláudio Bender completará 80 anos de idade. Indubitavelmente o mais importante dramaturgo que o Rio Grande do Sul já produziu, Ivo tem, nos últimos anos, investido em outra forma literária: a do conto, que já rendeu dois volumes de delicadas e precisas narrativas, Contos (2010) e Quebrantos e sortilégios (2015). Inegável, no entanto, é a constatação de que mesmo na narrativa curta é vislumbrado o estilo que o notabilizou no drama: a objetividade, até mesmo secura, com que descreve ações e caracteriza personagens. Secura, seja dito, suculenta, ainda que paradoxal essa imagem. O sumo que corre sob as tramas de Ivo Bender carrega alternadamente o ferruginoso do sangue, a repugnância do fel, a salinidade da lágrima que nasce do choro ou do riso.
Tomei conhecimento da obra dramatúrgica de Ivo Bender no final dos anos 1990, quando ingressei como aluno no curso de Artes Cênicas da UFRGS. Lá no Departamento de Arte Dramática, que já abrigara o Ivo aluno e posteriormente o Ivo professor, li a Trilogia perversa, que ele publicara em 1988. Não foi uma recomendação de nenhum professor, mas curiosidade apenas do "rato de biblioteca" que sempre fui (e, por sorte, continuo sendo). Naquele início de faculdade, li também pela primeira vez tragédias gregas clássicas: a comparação entre as obras de Eurípides e Sófocles com as transposições efetuadas por Ivo para o ambiente sul-rio-grandense me fascinou e resultou em um envolvimento com sua obra que continua durando. Recordo, no entanto, que o primeiro texto de Ivo que vi encenado foi a "comédia pampeira" O boi dos chifres de ouro, que Camilo de Lélis montou em 1998 com elenco composto por Carlos Azevedo, Lígia Rigo, Renata de Lélis, Paulo Gaiger, Raquel Pilger e Stela Bento, entre outros.
Em 2000, fui convidado por Decio Antunes para atuar em As núpcias de Teodora- 1874, texto central da Trilogia Perversa de Ivo Bender, que nesta obra dialogava de perto com a tragédia de Eurípides Ifigênia em Áulis:
 
Na foto, com Lisandro Bellotto, em 2000

Depois, em 2002, a parte final da trilogia, batizada como A ronda do lobo- 1826 (título este sugerido por mim, e que foi aceito por Decio, o encenador, e por Ivo, o que muito me honra):
 Na foto, com Giselle Cecchini, em 2002

Além dessas duas encenações inesquecíveis, que pela primeira vez trouxeram ao palco as obras-primas de Ivo Bender, atuei em, ou dirigi as leituras dramáticas de peças como As cartas marcadas ou os assassinos, Quem roubou meu anabela?, Casinha pequenina, Crime na biblioteca e, em agosto de 2006, na primeira leitura pública do até este momento inédito e mais recente texto dramático de Ivo, Diálogos espectrais- Conversando com Emily Dickinson, em que fui dirigido pelo próprio autor em apresentação no Instituto Estadual do Livro, ao lado de Luiz Paulo Vasconcellos e Giselle Cecchini.
Na foto, com Margarida Peixoto em As cartas marcadas ou os assassinos, de 2003
  
Anos depois do meu primeiro contato com a escrita de Ivo Bender, é uma satisfação vê-lo produtivo, dando um novo rumo ao seu incrível talento literário, ainda que me ressinta da falta de novos textos para o palco (que Ivo assegura que não mais produzirá, infelizmente). Continuo fascinado por seus textos, e foi a partir dessa vontade de conhecê-los cada vez mais que produzi e publiquei artigos em jornais e revistas, uma dissertação de mestrado em Letras (intitulada O papel do palco e o palco de papel- Trilogia perversa), uma pesquisa financiada pelo Fumproarte em seu Concurso Décio Freitas, em que escrevi o ensaio inédito Pondo os pingos nos Ivos, no qual analiso a obra dramática completa de Ivo Bender, formada por 36 títulos, e finalmente, participações em eventos que tematizam sua obra.
Na foto, Ivo conosco em leitura dramática de As cartas marcadas ou os assassinos, em 2010

Na foto, Ivo conosco em leitura dramática de Quem roubou meu anabela?, em 2011 

Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a vida e a obra de Ivo, pode acessar esse link que conduz ao verbete que escrevi há alguns para a Enciclopédia Itaú Cultural:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa427925/ivo-bender  

segunda-feira, 11 de abril de 2016

DRAMATURGOS EM DESFILE

Foto histórica esta, clicada por Fernanda Chemale na noite de 26 de março de 2016, no evento intitulado Noite do drama, promovido pela Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Entre a "decanicidade" do mestre Ivo Bender, à beira de seus 80 anos, e o frescor da descoberta da palavra dramatúrgica da novíssima geração de escrevinhadores cênicos, reuniu-se nessa ocasião grande parte dos mais representativos dramaturgos do Rio Grande do Sul. Ausências à parte, já que seria praticamente impossível reunir a todos os que escrevem para teatro, foi uma alegria e uma honra me ver incluído entre tantos admiráveis artistas.