Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

TETRACONTÁGONO OU RAMAL 340- SOBRE A MIGRAÇÃO DAS SARDINHAS OU PORQUE AS PESSOAS SIMPLESMENTE VÃO EMBORA

O espetáculo do Coletivo Errática - agrupamento de artistas oriundos da graduação em Teatro: Licenciatura da Uergs, localizado na cidade de Montenegro -, que tem em Jezebel de Carli as figuras de aglutinadora e encenadora, é uma ducha de água fresca no panorama da produção teatral de Porto Alegre. A ducha que aparece em uma das cenas de Ramal 340- Sobre a migração das sardinhas ou Porque as pessoas simplesmente vão embora, é, assim, além de metáfora do estimulante resultado que o espetáculo alcança, uma metáfora da encenação. Mas não é a única. Dizer que a arte (e o Teatro, primeiramente) é o território privilegiado das metáforas é redundante, mas mesmo as redundâncias precisam ser ditas. Assim, uma das primeiras metáforas que me alcançaram ao vislumbrar a cenografia de Rodrigo Shalako foi a que associa a arquitetura cênica, composta fundamentalmente de páletes de madeira organizados de forma a comporem nichos, corredores, planos e desvãos, com a estrutura fragmentária, multiarestada e poliperspectívica da dramaturgia de Francisco Gick. Mais: as frestas da cenografia, onipresentes, materializam os interstícios da encenação de Jezebel, que homenageia ainda, em algumas cenas, uma de suas maiores inspirações, a francesa Ariane Mnouchkine - o eventual orientalismo de Les Atrides, ou o realismo revisitado de Les Ephémères. Os interstícios se colocam como proposições à complementação do espectador, para que este tente organizar (com a (in)certeza prévia do insucesso) as variadas linhas narrativas em uma visada atenta. Não que o espetáculo seja confuso, ou hermético, ou sequer "difícil": ele tão somente nos coloca a questão da coautoria no sentido de estimular nossa percepção a se colocar naqueles interstícios dos quais escrevi antes. Verborrágico como sói acontecer em grande parte da dramaturgia contemporânea, o espetáculo tem entretanto um feliz equilíbrio entre verbalidade e visualidade, graças às belas imagens que vão sendo construídas com o auxílio da linda iluminação de Lucca Simas, além das ações atoriais muito precisas e consequentes ao universo que o espetáculo desenha. Sem o sarcasmo e a ferinidade entrevistas em Hotel Fuck: Num dia quente a maionese pode te matar, que Jezebel encenou em 2010 no seu grupo "paralelo", a Santa Estação, Ramal 340 traz uma encenação ainda bastante calcada na fisicalidade e no ritmo intenso de atuações e mudanças de cena, mas quero crer que há um "apaziguamento narrativo", que em minha opinião é bem vindo e agrega importantes qualidades ao seu trabalho. Certamente conta pontos no resultado positivo alcançado a evidente afinidade dos atores com a encenação. Não há quase nenhuma artificialidade na elocução dos textos, e acredito e entendo o que ouço e o que vejo. O elenco tem em Diogo Rigo, Francisco Gick, Guega Peixotto, Gustavo Dienstmann, Luan Silveira e Nina Picoli um resultado qualificado e de brilho, o que me deixa ainda mais satisfeito, visto que todos eles foram ou ainda são meus alunos na Uergs.
Certamente o texto dramático tem um desafio extra, em comparação a um conto, romance ou poema, que é a impossibilidade de ser ouvido de novo, no aqui-agora da encenação: um espirro dado pelo espectador pode significar a perda da informação de quem era o homem que Édipo matara indo para Tebas! Brincadeiras à parte, um texto como o de Francisco Gick não se absorve até a última ponta, como outros tipos de dramaturgia mais estável: aqui, compreende-se também por inferências e ilações. Uso, por fim, a imagem do tetracontágono, um polígono de 40 lados na geometria, inspirado no que é dito por duas vezes no espetáculo: que atualmente o mundo tem pelo menos 20 guerras diferentes acontecendo nos mais variados pontos do planeta, com 40 lados diferentes digladiando por...pelo que mesmo é que eles lutam? Qual é o nosso lado? Ramal 340 é um tetracontágono por nos oferecer uma variedade de abordagens interpretantes, conforme variemos o ângulo que adotemos para observá-lo.

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