Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

segunda-feira, 11 de março de 2019

NOSSO ESTADO DE SÍTIO EM PORTO ALEGRE

A graduação em Teatro: Licenciatura da Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul), ofertada na cidade de Montenegro, traz em seu currículo duas disciplinas que intentam integrar os conhecimentos adquiridos pelos alunos e alunas até o momento em que são oferecidas no currículo: Oficina Montagem I e Oficina Montagem II, respectivamente pertencentes à grade do quinto e do sexto semestres. Disciplinas com carga horária elevada, 12 créditos cada uma, o que significa três encontros semanais de mais de 3h30min cada um, propõem a criação de um espetáculo teatral, no qual discentes atuam e o docente responsável dirige/orienta a encenação. Com ementa aberta o suficiente para permitir as mais variadas propostas estéticas, a tendência dominante nas ocasiões em que tais disciplinas são ministradas é, por parte de quem a coordena, exercer a escuta no momento em que se iniciam os trabalhos no semestre. Por escuta me refiro a estar aberto e atento não apenas às sugestões, desejos, sonhos de alunos e alunas, que prolificamente trazem suas ideias sobre o que se deveria encenar; mas também a escuta do mundo, do meio em que vivemos, dos assuntos, questionamentos, incertezas, medos, indignações, etc., que formam a base do trabalho em teatro. É para o mundo que precisamos olhar quando decidimos que devemos usar o teatro para falar sobre isso ou aquilo. Olhando para o mundo, olhamos para dentro de nós, e vice-versa: o mundo está em nós, e nós no mundo. 
No primeiro semestre de 2018, o grupo envolvido com a disciplina Oficina Montagem I, ministrada pela professora Tatiana Cardoso, decidiu que trabalharia tendo por base o texto dramático Estado de sítio, escrito em 1948 pelo dramaturgo Albert Camus (1913-1960), francês nascido na Argélia. Em junho, ao final do semestre, foi apresentado o resultado, chamado pela equipe de “em processo”, pois surgiu a proposta, oriunda dos alunos, de dar continuidade à investigação cênica desenvolvida naqueles primeiros meses. Aceitei a proposição e me dispus, no semestre seguinte, a assumir a turma e continuar com o trabalho em processo, mas estabeleci uma condição: a de que eu tivesse liberdade total para modificar o que fôra até então criado e, mais do que isso, focar nos temas que eu percebia presentes no texto de Camus e que eu gostaria de relacionar, muito mais criticamente, com a era Bolsonaro que, naquele momento, começava a se materializar. Após esse acerto iniciamos o trabalho, e estou convicto de que o período em que erguemos o espetáculo Nosso Estado de Sítio, entre agosto e novembro de 2018, foi decisivo para o resultado que obtivemos: criávamos antes, durante e após o processo eleitoral que levou Bolsonaro à presidência do Brasil. Não poderíamos ter estímulo mais afiado para construir a crítica política e comportamental que encenamos.

Uma vez estendido o pano de fundo - os absurdos ideológicos advindos de apoiadores e do próprio Bolsonaro -, era preciso encontrar a melhor maneira de relacionar a fábula de Camus, na qual a passagem de um cometa pela cidade de Cádiz, na Espanha, traz a reboque a chegada da Peste e da Morte, ambas encarnadas em figuras antropomorfizadas, trazendo destruição, medo e perda de vidas. Minha opção foi a de radicalizar a encenação, no sentido mesmo de raiz: limar tudo que se configurava como excessos discursivos (por se tratar de um texto com 70 anos, era muito presente a importância dada por Camus à palavra) e substituir por imagens que, se nem sempre fiéis àquelas propostas pelo dramaturgo, surgiam como alternativas atualizadas para o espírito do século XXI, ao tratar de preconceito, intransigência e desgoverno. 
Encontrar figura homóloga à Peste foi fácil: o ultraconservadorismo nosso contemporâneo se colou à perfeição à metáfora camusiana: que chega com um ímpeto de destruição, de terra arrasada, passando como tanque de guerra sobre a diversidade, a delicadeza da diferença e o direito de ser quem se é. Minha indicação era a de tornar os três longos atos da peça de Camus em uma bofetada de 40 minutos, sem pudor de contar a “história” de forma diversa de uma narrativa convencional. Ao invés de personagens, como propunha Camus, construímos figuras intercambiáveis entre atores e atrizes. A fluidez de gênero nessas figuras também foi uma marca: um ator podia atuar como a personagem feminina Vitória, assim como uma mulher podia atuar a personagem masculina Diogo.
Outra decisão foi a de investir na coralidade. Os coros predominam no espetáculo, dando volume à cena, eivada de corpos que se movem e se fazem ouvir: um coro que ora representa os opressores, ora os oprimidos. Também considero a cara do espetáculo as citações ao Brasil contemporâneo, antropofagizando falas, situações e imagens associadas à era Bolsonaro. Afinal, esse é o “nosso estado de sítio”, não mais apenas o de Camus.
O resultado que obtivemos nos animou a continuar, e recebemos importantes chancelas: em janeiro  de 2019, o espetáculo Nosso Estado de Sítio foi selecionado e se apresentou no Itaú Cultural, na cidade de São Paulo, em uma convocatória chamada a_ponte- Cena do Teatro Universitário, que escolheu 14 trabalhos de todo o Brasil e tinha como foco o teatro universitário contemporâneo e suas formas de lidar com essa linguagem. Nosso espetáculo foi o único gaúcho a participar do evento.
Agora, Nosso Estado de Sítio foi selecionado para uma temporada no projeto Novas Caras, promovido pela Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre. O coletivo UAU – União de Artistas da Uergs –, que nasceu dentro da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, apresenta o espetáculo na sala Álvaro Moreyra, nos dias 12, 19 e 26 de março de 2019, sempre às 20h. A peça foi recentemente apresentada na cidade de São Paulo (SP), viabilizada através da convocatória a_ponte, promovida pelo Itaú Cultural, em janeiro de 2019, e agora se prepara para realizar apresentações na capital gaúcha. O escritor Albert Camus, autor do texto no qual a peça buscou inspiração, certa vez proferiu um discurso analisando o papel do artista, que não deve apenas distrair o público, mas comover o maior número possível de cidadãos, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns. Com esse mesmo propósito segue o convite para um espetáculo teatral, onde compartilhar ideias e angústias pode fazer sentido.
Nosso Estado de Sítio traz no elenco, formado totalmente por alunos e alunas da graduação em Teatro: Licenciatura da Uergs, sediada na cidade de Montenegro (RS), os seguintes nomes: Bruno Marques, Charlene Uez, Felipe Vigel, Gabriela Lemos, Jocteel Salles, Fayola Oliveira, Lucas Peiter, Marina Martins, Mônica Blume, Pâmela Magalhães, Paula Silveira, Paulo Rosa, Rodrigo Waschburger e Savana Flores. A direção e a concepção do espetáculo são minhas.

SERVIÇO

O quê? Espetáculo teatral Nosso Estado de Sítio.
Quando? Dias 12, 19 e 26 de março, sempre às 20h.
Onde? Sala Álvaro Moreyra, Porto Alegre.


Ingresso? R$ 20 e R$ 10 (estudantes, melhor idade e classe artística)