Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

domingo, 16 de agosto de 2009

Um avarento

Cheguei hoje de Gramado, e já me programei para assistir à montagem do Grupo Farsa para uma das mais conhecidas comédias de Jean-Baptiste Poquelin, o famoso Molière. Posso me considerar um bom conhecedor da dramaturgia de Molière, pois já li e tenho em casa quase tudo que ele escreveu (minha biblioteca molieresca foi aumentada recentemente com uma série de edições portuguesas da Editora Lello & Irmãos, da cidade do Porto). É um prazer conhecer a fundo uma obra dramática que me interessa há tantos anos, e reconhecer as repetições de temáticas, as sutilezas de estilo, as cartas na manga de um autor como Molière que, se não é sempre perfeito, é sempre interessante. Molière escreveu mais de 40 peças, e dessas, 33 chegaram até nós (infelizmente só as comédias, nenhuma de suas tragédias à la Corneille foram preservadas). Eu e a Margarida já montamos dois Molière - em 2004, Escola de mulheres, e, no ano passado, O médico à força. A exemplo do Grupo Farsa, também queremos completar uma trilogia, e já temos escolhido o texto que será o fecho desse delicioso mergulho no genial francês. Que bom que Molière vem sendo montado em Porto Alegre, a exemplo do que aconteceu há alguns anos com Shakespeare. Por vários anos, nossa cidade deixou de lado Poquelin, e nem me lembro de qual foi a montagem anterior à nossa de 2004.
Pois bem, assistindo a O avarento, reforcei minha opinião de que a comédia, exceto prova em contrário (e ainda mais as clássicas), necessitam de um ritmo levemente acelerado para alcançar seus objetivos, dos quais imagino que um deles seja o de fazer rir. E esse levemente acelerado por vezes deve ser "bastante" acelerado, para que a sequência de surpresas e ações propostas não permitam ao espectador momentos de desinteresse. Claro que teoria e prática nem sempre caminham juntas: o que sabemos ou acreditamos ser o melhor, por vezes não é alcançado concretamente.
O que percebi na montagem de Gilberto Fonseca, claramente empenhado nesse projeto, é uma falta ainda de timing, para que a peça fique redondinha, como se diz. O próprio Gilberto, quando assistiu o nosso O médico à força, no dia da estreia, comentou coisas que outros espectadores, tão capacitados quanto ele, discordaram. É por isso que atribuo à recente estreia à oscilação de ritmo que dá algumas barrigas para o espetáculo do Grupo Farsa. Os atores conhecia dos palcos a quase todos: Elison Couto, o protagonista, ainda se ressente de um pouco de insegurança com o texto, em alguns momentos. Sinto falta de um pouco mais de "energia", termo abstrato, que nós do teatro conhecemos bem. Só espero isso de Elison porque sei onde ele pode chegar, haja vista à montagem de O urso, de 2003. E um protagonista de Molière é sempre um grande desafio, já que o próprio escrevia para si os melhores papeis. Falta um pouco de avareza no avarento, mais repugnância, que, quando aparece, é muito boa. Lúcia Bendati é minha colega de palco há mais de dez anos (tudo isso!), e sempre gosto de vê-la em cena. Desta vez não é diferente: Frosina é deliciosa, e Lucinha está com um timing muito legal, que dinamiza e surpreende. Zé Mario Storino conheço desde 1993, quando assisti Romeu e Julieta (que a Margarida também fazia). Zé Mario tem facilidade com os tipos, e dá o tom de farsa que a comédia pede, sendo bastante divertido. Dá para ver que ele ainda vai crescer muito, superadas pequenas imprecisões. Lucas Krug, João Madureira, Marcos Chaves, Daiane Oliveira e Ariane Guerra: todos empenhados e prontos para crescer em desempenho. No Marcos, algumas dificuldades de dicção; no Lucas, um pouquinho de "moleza" às vezes: mas tudo efeito da pouca carreira do espetáculo.
Duas coisas me chamaram a atenção: a seriedade dos atores, sentados em bancos ao redor da área de atuação, não é benéfica para o espetáculo. Talvez um sorriso, um envolvimento maior com a cena, estimulasse os colegas e o público. Parecia que os atores, fora de cena, estavam angustiados e sofrendo com o desenvolvimento da peça. Outra coisa: a ideia do tapete à la Peter Brook, como demarcador da área de atuação, é bacana, mas não entendo o que é aquele - desculpe a expressão, mas é o que pareceu, da plateia - "amontoado" no fundo do palco. A todo momento eu esperava que aquele volume fosse trazido mais para a frente, e contivesse alguma ação nele embutida. Da mesma forma o lustre, tão ao fundo, não é valorizado como poderia: está mal resolvido e mal colocado em cena. Os figurinos de Daniel Lion são bons como sempre (apenas acho que se as cores dos vestidos das personagens da Ariane e da Daiane fossem mais diferentes uma da outra, seria mais bonito).
Muito legal a sacada de transformar em musical edulcorado a série de revelações ao final da peça (como é típico em Molière, Shakespeare, etc.). Mas senti falta dessa ousadia durante o restante da peça, que por vezes se arrasta com longos textos com pouco riso. A música, bem composta, no entanto parece inadequada em alguns momentos (será que pela escolha do arranjo? O Marcos pode responder isso!). O mais legal é que todos cantam muito bem, afinados. É sempre bonito ver música bem executada em cena. Enriquece muito o espetáculo.
Parabéns ao grupo pela montagem. O que escrevo aqui é fruto de meu amor pela comédia (que será tema do meu Doutorado, a partir do ano que vem) e por Molière. Parabenizo o esforço e a persistência em montar esse texto: tenho certeza de que tudo que ainda está verde amadurecerá e florescerá.

3 comentários:

  1. Marcelo, tuas colocações são interessantes; muitos dos detalhes que faltam para deixar a montagem "redonda" estamos descobrindo nesta temporada de estreia. A música nesta peça entrou quando o grupo sentiu necessidade, os arranjos todos remetem ao barroco e possuem inserções da frases e instrumentos contemporâneos. A vocal, por exemplo, que os atores cantam em volta de Harpagão no momento do surto pelo roubo de seu dinheiro; está em compasso incompleto para criar uma relação de instabilidade, como devaneios na cabeça do protagonista. No mais procurei trabalhar com o foco no canto coral, valorizando os naipes dos atores. Concordo contigo, tudo está um pouco verde e vai amadurecer. Abraço.

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  2. Grato pelas colocações, Marcelo. Respeito tua opinião e acho tuas colocações muito pertinentes e me fizeram pensar. Tenho certeza de que O Avarento ainda tem muito que amadurecer, certamente teremos vida longa e nessa jornada muitas coisas ainda serão revistas. Abraço.

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  3. bom texto, colega!
    bem escrito, coerente e argumentado!
    bjs p ti e meg

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