Sarah Kane (1971-1999) viveu pouco e nos legou cinco peças. Dramaturga inglesa que é seguidamente considerada como uma das responsáveis pelo estilhaçamento do texto teatral contemporâneo, ela carrega como um estigma o fato de ter cometido suicídio, após algumas tentativas mal sucedidas. Foi internada em instituições psiquiátricas, e numa dessas é que escreveu esta Psicose 4h48, sua última peça, encenada postumamente na Inglaterra.
A peça conta (?) ou mostra, ou sensibiliza, ou algum outro verbo à escolha do freguês, a angústia e os pensamentos frequentemente fragmentários de uma mulher que tenta repetidamente o suicídio (vejam que a fábula é bastante autobiográfica). Em relação confessional com outra personagem, um homem, provavelmente um médico, apesar de não se vestir como um, essa mulher vomita medos, lembranças, psicoses, enfim.
Senti muito não ter gostado da peça, porque admiro Sarah Kane, e acho tudo o que ela escrevia muito forte e poético. O problema principal, em minha opinião, foi o da redundância da encenação, que insiste em nos mostrar um universo cinzento, niilista, desesperançado e angustiante, estendendo essas imagens pessimistas por cada minuto e cada centímetro da encenação, sem nenhum tipo de refresco ou transcendência. Não estou defendendo a amenização da forte carga de desespero do texto de Sarah Kane, pelo contrário: acredito que essa é a principal qualidade da autora, a falta de pudor para tratar de um tema tão espinhoso. Mas é que o preto no preto desaparece. O branco sobre o branco não é percebido. O cinza que cobre o cinza não é visto. É preciso nuançar, fornecer uma outra cor que seja, na palheta.
A direção de Marcos Damaceno nos coloca em um espaço bastante pequeno, próximos aos atores, que estão iluminados por algumas lâmpadas fluorescentes, que frequentemente reduzem-se a um simples "bafo de luz". A penumbra é constante, como que reforçando a ideia de que "é uma peça dark, então o visual tem que ser dark". Não concordo com isso: essa nota única, que perpassa o espetáculo do início ao fim, cansa em determinado momento.
No programa do espetáculo, o diretor escreve que a peça de Sarah Kane "incita, a quem se debruça a encená-la, a criar correspondentes cênicos e interpretativos à singularidade poética do texto". Infelizmente isso não aconteceu, pelo contrário. Damaceno não nos dá nenhuma imagem que fuja da situação pseudo-realista de uma mulher internada em uma instituição psiquiátrica. E olhe que o texto de Kane é riquíssimo de possibilidades: na versão impressa da peça que possuo, algumas páginas se aproximam de poemas concretos, tal a profusão de números, fórmulas, espaçamentos de texto que se encontram. Sarah Kane não escreveu uma peça próxima do convencional; quem fez isso foi o diretor do espetáculo.
Nesse sentido, o trabalho dos atores Rosana Stavis e Marcelo Bagnara é bom, mas poderia ser melhor não fossem as imposições psicologizantes do encenador. Bagnara, em sua fala final, está muito convincente e próximo daquilo que considero o ideal. Rosana tem alguns problemas de dicção, quando fala rápido ou grita, não precisava.
Faltou poesia para o espetáculo. O impacto seria muito maior se fosse deixado de lado, por alguns momentos, a "faca". Um bom exemplo de poesia cruel é quando se projeta, na parede do teatro, um trecho do texto, com um som ensurdecedor de fundo. Aí há algo mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário