O diretor Marcio Aurelio, responsável pela encenação de Anatomia Frozen, é um dos mais destacados do país, dirigindo, desde os anos 1970, espetáculos marcantes no teatro brasileiro. Este que agora pudemos conferir no Em Cena, certamente entrará para a galeria dos melhores do diretor.
O que é mais surpreendente é a maneira como as expectativas se invertem, ao longo da peça. Apesar de ter boas doses de humor, a história contada é pesadíssima, angustiante, e a opção do encenador é vestir as personagens com roupas quase ridículas: um saco de plástico branco, um avental de açougueiro tendo por baixo um cueca samba-canção, toucas de plástico transparente na cabeça. Não consegui compreender o sentido dessas vestes tão estranhas, exceto o fato de serem, todas, brancas. Certo, assepsia deve ser o sentimento buscado. Paulo Marcello tem a aparência de um cirurgião, e Joca Andreazza lembra, vagamente, alguém que está sendo levado para uma mesa de cirurgia. Se fosse essa a ideia, porque o ridículo? Resposta minha: para estranhar. Sinto cheiro de Brecht por aqui, oba!
Fiquei sabendo pela Florência Gil, que acompanhou a montagem desse espetáculo, que o texto original de Anatomia Frozen, escrito por Bryony Lavery, tem uma estrutura convencional, em três atos, com três personagens sendo interpretadas por três atores (ou melhor, um ator e duas atrizes). O grande trabalho de adpatação, a cargo da Cia. Razões Inversas, é admirável e perfeito. Transformaram a estrutura aristotélica original uma pérola do teatro épico, e comprovam aquilo que Bertolt Brecht já defendia: distanciamento não é sinônimo de frieza, pois é possível sim comover-se com essa estética tão específica. Como rezava a cartilha do Pequeno Organon, os momentos de distanciamento eram apresentados, de tempos em tempos, para nos relembrar que trata-se de atores interpretando personagens: Paulo Marcello, por exemplo, interpreta duas mulheres, vestido e com aparência de, homem. Nem sei se Marcio Aurelio teve essa proposta brechtiana em sua encenação, mas como a leitura do receptor é a que conta, pois em última análise somos nós quem decodificamos a mensagem, vou tomar como essa a intenção.
A trama da peça coloca uma "doutora em cérebro", um pedófilo assassino e a mãe de uma das pequenas vítimas do psicopata como peões do tabuleiro da encenação. Com uma simplicidade extrema de elementos, apenas três banquinhos de aço, colocados paralelemente ao proscênio, e um linóleo preto cobrindo o chão, o maior mérito da montagem é, indubitavelmente, o trabalho dos dois atores, nada menos que brilhante. E se é possível ser melhor que brilhante, concedo essa possibilidade a Joca Andreazza, que interpreta o assassino: ele é muito bom, tem tudo que é necessário ao Ator com A maiúsculo, voz potente, corpo ágil, timing, sensibilidade. Paulo Marcello, apesar de ser excelente, apresenta alguns problemas de dicção, que uma vez resolvidos, o qualificarão ainda mais.
Sem dúvida um dos meus destaques do Em Cena deste ano.
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