Navalha na carne é, dividindo o pódio com Dois pedidos numa noite suja, a peça mais conhecida escrita pelo dramaturgo santista Plínio Marcos. Encenada pela primeira vez em 1967, no auge portanto da ditadura militar no Brasil (mas ainda antes do famigerado AI 5, de dezembro de 1968), a peça situa-se no cume da linguagem desenvolvida por Marcos em dezenas de outras obras. Por linguagem entendo a forma como as personagens que habitam o submundo e a periferia das grandes cidades se expressam nas peças escritas por ele. Palavras de baixo calão, gírias, discursos objetivos e ausência quase que absoluta de uma elaboração "poética" da fala, concentrando-se no que se chama de função emotiva ou expressiva da linguagem. Muitas interjeições, muito bate boca, uma repetição estrutural de motivos que se acumulam. Navalha na carne é uma peça simples, dramaticamente falando, porque não há uma evolução rica do conflito exposto. O conflito é muito mais uma forma de escancarar alguns tipos de personagens, neste caso, pessoas que vivem à margem da sociedade, envolvidas com prostituição.
Esse mundo foi explorado por Plínio Marcos em várias de suas peças. Era um universo que ele conhecia intimamente, por convivência. Por isso são tão verdadeiras as palavras pronunciadas por Vado, Neusa Sueli e Veludo. A peça é, nesse sentido, quase documental, porque não defende exatamente um ponto de vista, apenas mostra as coisas como são. A prostituta serve ao cafetão sem nenhum traço de auto-estima; o cafetão só quer viver bem através da exploração e da violência; o homossexual tem a sexualidade à flor da pele. Essas são as características dadas por Marcos às suas figuras. Sim, quando se lida com tipos tão específicos como esses, há o risco de redução comportamental e caricaturização (nem todos os homossexuais se comportam como Veludo; nem todas as prostitutas agem como Neusa Sueli). Mas, para efeito cênico, as coisas funcionam muito bem como escritas por Plínio Marcos: a intenção não era psicologizar.
Esse autor, morto em 1999, em grande dificuldade financeira, apresenta com Navalha na carne uma peça muito ruim de ser lida, mas que pode funcionar esplendidamente como encenação. O texto é praticamente nada (o que pode transformar a encenação em nada, igualmente). O mérito desta montagem dirigida por Pedro Granato é nos dar, surpreendentemente, uma visão nova sobre esse conhecidíssimo embate. Talvez o uso inteligente das pausas e, mais do que isso, o abandono, em muitos momentos, do grito, transformando uma intenção grandiloquente em algo sussurrado. Isso nos desautomatiza: onde esperamos o desaforo escancarado, recebemos a ironia e o deboche à meia voz.
Os atores são muito bons, e se entregam completamente à encenação, o que eleva muito o tom de verdade exigido. A ambientação, simples mas na medida, contribui para o engajamento do espectador, que sente quase "na carne" a violência. Sem dúvida, um dos melhores espetáculos deste festival.
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