Assisti, na mesma noite, a dois espetáculos-solo. Primeiro, A noite do barqueiro, texto e direção de Samir Yazbek. Depois, La douleur, direção de Patrice Chéreau para a adaptação de um texto de Marguerite Duras. Dois espetáculos tão diferentes um do outro que parece até que foram feitos para exemplificar o que seria o contrário de algo. Deixe-me explicar melhor: as duas concepções são tão absolutamente opostas, que podem ser comparadas formalmente. A noite do barqueiro, que dura menos da metade que La douleur, parece ter o dobro de duração. Por que tive essa impressão? Porque Yazbek preenche os 40 minutos de seu espetáculo com um número tão grande de elementos que me senti saturado de informações. Exemplos: trilha sonora que vai de grandiosa a mística; iluminação que vai do grandiloquente ao poético; figurino que beira o barroco; cenografia (e aqui faço uso da expressão de Roberto Oliveira, que a classificou como prêt-à-porter, porque é tanta coisa ao mesmo tempo que acaba não sendo nenhuma coisa). E, finalmente (but not for least), a atuação de Hélio Cícero. Pena que ele não atinge seu melhor momento, como na montagem que assisti, há alguns anos, no próprio Porto Alegre em Cena, de Toda nudez será castigada, dirigida pela Cibele Forjaz. Naquela versão, Leona Cavalli fazia uma magnífica Geni, e Cícero, um maravilhoso Herculano. Em A noite do barqueiro (que na noite em que assisti tinha a presença ilustre da atriz Xuxa Lopes, atriz-musa de Ana Carolina - a cineasta, não a cantora), o ator que conduz toda a narrativa está, em uma palavra, over. Percebo claramente, no brilho do olho dele, o envolvimento profundo e a crença em seu trabalho. Mas, infelizmente, isso não é o suficiente para tirá-lo de um registro de ator-musa, aquele ator que sabe que tem boa técnica e "longos serviços prestados ao teatro", mas que escorrega também, como qualquer um. Uma empostação ao dizer o texto, uma musicalidade que se repetia em excesso, isso me afastou do espetáculo. Outro problema, esse do autor-diretor, é o da indefinição de sobre o que exatamente trata a peça. Uma espécie de viagem interior, misturada com um limbo, com uns laivos metafísicos...Apesar de a peça ser curta, eu torcia para que acabasse logo, e uma palavra me vinha à mente: mico.
Já o espetáculo protagonizado por Dominique Blanc é o extremo oposto. Utilizando a caixa do teatro totalmente descarnada, inclusive com o aproveitamento das janelas do próprio Theatro São Pedro, visíveis ao público, a peça é calcada quase que exclusivamente na elocução de um texto por uma atriz. E é lindo. A descrição que Blanc faz do estado em que seu marido volta de um campo de concentração nazista, animalizado, pesando 38 quilos, à beira da morte, é chocante. Escatológica, a palavra "merda" é utilizada dezenas de vezes, para metaforizar toda a terrível situação. Com apenas nove cadeiras, uma mesa, um prato e esses objetos que podem ser vistos na foto aí de cima, Dominique Blanc impressiona pelo domínio da plateia, pelo domínio do texto, pela contenção e força. Nenhuma mudança de luz em mais de 90 minutos, exceto um fade in e um fade out, que iniciam e encerram o espetáculo; nenhuma trilha sonora, absolutamente apenas a voz e as imagens criadas pela atriz. Roberto Oliveira (desculpe citá-lo de novo, mas é preciso) chama isso de teatro essencial. E é. Essencial como sinônimo de tudo em seu devido lugar. Não é simples fazer algo assim, é terrivelmente complexo e corajoso.
Yazbek e Chéreau trilharam caminhos diferentes e atingiram níveis diferentes de teatro. Entre o excesso e o essencial, nem sempre escolho o essencial (me lembro agora de Big in Bombay, de Constanza Macras, espetáculo de dança deliciosamente excessivo e caótico). Mas hoje me rendi à essência (no) do teatro.
Que delícia de texto!!
ResponderExcluirVelho, vamos conversar assim que acabar o Em Cena para bolarmos o "Duas vezes Molière", adorei tua ideia! Grande abraço.
ResponderExcluirÓtimo texto esse aí em cima!
eu também adorei a tua idéia! conversa com o gilberto sim! beijos!
ResponderExcluir