No Hamlet de William Shakespeare, em determinado momento da cena II do ato II, ocorre uma situação rica em possibilidades de prospecção de camadas de significados. Trata-se da cena em que Polônio relata ao casal real Cláudio e Gertrudes acerca do estado mental do príncipe Hamlet, que - Polônio assim considera - está fragilizado pelo amor que o jovem herdeiro da coroa dinamarquesa dedica à doce Ofélia, justamente a filha mais jovem do relatante. Para demonstrar sua tese, Polônio vale-se de uma carta escrita por Hamlet a Ofélia, e que se encontra em seu poder. Sabemos assim, não a partir da ação dramática, mas, pode-se dizer, através da narrativa épica, dos sentimentos de Hamlet da forma mais precisa possível - ou seja, por suas próprias palavras, registradas na missiva. Então Polônio lê em voz alta:
Duvide que a estrela é ardente,
Duvide que o sol levanta,
Duvide que o sincero mente,
Mas não que meu amor é franco.
Oh, querida Ofélia, não sou bom em versos. Não tenho arte para dar forma aos meus gemidos. Mas que te amo tanto, mas tanto mesmo, acredite nisso. Adeus. Teu para a eternidade, caríssima senhora, enquanto essa máquina lhe pertencer, Hamlet.
O que chama atenção nessa breve declaração de amor, que será, ainda na mesma cena II, totalmente contraditada com a violência pela qual Hamlet expurga Ofélia, é o uso da metáfora da máquina para falar do corpo humano, essa "máquina desejante", como Deleuze a chamará no século XX. Também vale a pena mencionar que o filósofo francês René Descartes trará a ideia do corpo-máquina, porém apenas no século XVII, mais de um século após o belo achado imagético de Shakespeare. Finalmente, nos anos 1970, o alemão Heiner Müller batizará de Hamletmaschine um de seus mais conhecidos textos.
Quando ouvi pela primeira vez o título do novo espetáculo escrito e dirigido por Júlio Conte, não me ocorreu que a menção à mecânica se relacionava mais explicitamente a uma oficina mecânica, e não às engrenagens da existência. Ainda mais quando associada a mecânica ao amor, lembrar do Hamlet fez para mim todo o sentido. Então, no decorrer do espetáculo que assisti na estreia, fui tentando juntar a minha expectativa prévia com o que eu via sobre o palco, e descobri que é possível fazer aproximações entre a máquina a que se referia Hamlet com a mecânica do Júlio Conte.
Em destaque está a relação entre os dois mecânicos vividos por Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio. Uma relação de amizade, em primeiro lugar, de coleguismo na profissão, em seguida, e, finalmente, uma relação de poder, já que um é "chefe" do outro. O chefe/dono da oficina - batizada, um tanto bizarramente de "Mecânica do amor" - demonstra ser o prático da oficina, aquele que domina a tecnologia através de seu laptop da Apple. Seu empregado é o clássico rústico, quase estúpido em sua total inaptidão para apertar os botões do computador. No entanto, demonstra uma maior "inteligência emocional", mesmo que enviesada e seguidamente machista. Nada a criticar, já que existem homens assim, e o que a dramaturgia faz é mostrar isso. Ambos, patrão e empregado, passam a maior parte do tempo "enchendo linguiça", sem "colocar a mão na massa", ou seja, mais conversam e trocam impressões sobre o mundo do que são produtivos no trabalho. E quando me refiro à visão de mundo que ambos projetam, explicita-se mais exatamente do que as duas personagens são reféns: de uma perspectiva sexista, em que na maior parte do tempo se colocam "eles" em oposição a "elas", como duas espécies pouco semelhantes, com o aditivo de que "elas" devem ser decifradas, tal a separação que se constrói entre os dois gêneros. Passo a compreender a ideia da mecânica do título mais no sentido de engrenagem shakespeariana. O amor como uma engrenagem dentro de uma outra engrenagem (o corpo humano), dentro de uma outra engrenagem (o papel social de cada um de nós). Reféns são os dois mecânicos dentro da engrenagem masculina, que normatiza um comportamento, com seus códigos bem conhecidos pelos indivíduos do sexo masculino; códigos que passam pela ojeriza/deboche da homossexualidade, através da afirmação da masculinidade pelo tamanho do pênis e pela frequência com que se faz sexo: é preciso provar reiteradamente o pertencimento à irmandade do falo (ereto!) com essas afirmações subliminares de macheza. Os dois mecânicos são máquinas, não de amar, mas de reproduzir; "os homens que copiavam", parafraseando o filme de Jorge Furtado, que copiavam comportamentos estabelecidos, como o do velho Caneta, metalinguisticamente representado por uma fotografia do próprio Júlio Conte, em uma cameo role à la Hitchcock. Aliás, é perfeita essa aparição do Júlio justamente como o patriarca, o macho alfa do macharedo, para reforçar minha hipótese.
Realmente o título do espetáculo não contempla tudo que ele entrega. Não se fala quase de amor, a menos que se considere a amizade como um tipo de amor, mas neste caso seria mais adequado batizar de A mecânica da amizade. A entrada de outras duas personagens, interpretadas pelos mesmos atores, em uma subtrama que trata de delação premiada, corrupção e traição de confiança, vem como um contraponto mais denso e um pouco nebuloso da anterior situação predominante. E esse depositar de confiança no discernimento dos espectadores é, novamente, apontado pela metalinguagem, quando Fabrizio e Lucas, os atores, questionam se o público vai entender o que está acontecendo. Aparentemente sim, entendemos.
Todas essas observações são integrantes da minha satisfação, em resumo, de ter assistido ao espetáculo. Fiquei especialmente contente pela declaração de Júlio em defesa da arte cênica como saída possível para um mundo melhor, pelo organicíssimo jogo entre os atores, e pelo trabalho de atuação de Fabrizio Gorziza. Não posso deixar de referir que Fabrizio começou fazendo teatro, há mais de 10 anos, em uma oficina da Cia Teatro ao Quadrado com direção da Margarida Peixoto e texto meu. Também foi por nosso intermédio que Fabrizio fez seu primeiro trabalho profissional em teatro, justamente o Hamlet dirigido por Luciano Alabarse, em 2006. Depois, fui colega de palco de Fabrizio em vários espetáculos, e agora, vendo um ator maduro, cheio de recursos, inteligente cenicamente, fico orgulhoso e na expectativa de voos ainda mais altos. Sobre a encenação do Júlio, me alegra essa mescla entre um teatro mais clássico, aristotélico, com piscadelas pós dramáticas, que tornam a assistência prazerosa e vívida. Soluções simples e criativas, um investimento claro no trabalho dos atores, e uma vontade de falar do mundo atual, mesmo que essa escolha ponha em risco algum tipo de "unidade" dramática. Correr riscos é assim. Fazer teatro é correr riscos. E fazer teatro sem incentivos, a não ser o auto incentivo, que nos faz acreditar que arte é importante, e que precisamos exercê-la para sentirmos "que estamos de volta". Júlio não tinha saído, sempre esteve aqui, no bloco daqueles que constroem e ajudaram a construir a história do teatro em Porto Alegre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário