Crítica de ARTIMANHAS DE SCAPINO, por Antônio Hohlfeldt, publicada na edição de hoje do Jornal do Comércio de Porto Alegre:
Novo reencontro com Molière
"A diretora Margarida Leoni Peixoto tem perseverado na busca de uma linguagem
contemporânea, capaz de “traduzir” a verve criativa e comunicativa da
dramaturgia cômica de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière. Este
é o seu terceiro trabalho baseado no conhecido comediógrafo. O resultado é, em
todos os sentidos, altamente positivo porque, embora a peça tenha uma duração
relativamente longa para a prática atual, com quase duas horas de encenação, sem
intervalo, a verdade é que o espetáculo envolve a plateia de tal modo, que a
gente não percebe o decorrer do tempo.
Uma montagem teatral, para alcançar plena consecução, depende de inúmeros
fatores, porque ela sempre é, antes de tudo, um trabalho coletivo. Mas o
processo começa, certamente, pela escolha do texto e sua leitura
criativa-interpretativa; passa pela escolha do elenco e chega à equipe técnica,
que viabiliza e concretiza as ideias da direção. Em todos esses elementos,
Margarida Peixoto acertou, a começar pelo uso da bela, articulada e flexível
tradução do texto original, feita por Carlos Drummond de Andrade.
O elenco de Artimanhas de Scapino, que é a peça a que nos referimos aqui, é
equilibrado e foi cuidadosamente trabalhado pela direção, de modo que não há
titubeios: cada ator e atriz sabe exatamente o que faz e o espaço que ocupa,
tanto no espaço físico do palco quanto na trama em desenvolvimento. Ele é
uníssono, ainda que, uma vez mais, Marcelo Adams se destaque no conjunto,
favorecido, certamente, pela figura que incorpora, mas também por sua
versatilidade: custei a reconhecer o ator por sob o figurino do criado da
tradicional comedia dell’arte. Mas há uma surpresa a mais em cena: Paulo
Vicente, veterano ator, meio que desaparecido de cena, e que retorna, aqui, na
pele do avarento e antipático Gerôncio. Sua interpretação clássica é definitiva
e inolvidável. Diria mesmo que, em se tratando do personagem que é, ultrapassa a
Scapino.
Margarida Peixoto cuidou muito dos entornos da montagem. Assim, os figurinos
de Cláudio Benevenga são coloridos; houve preocupação com a naturalidade das
perucas, e a cenografia de Élcio Rossini garantiu veracidade à cena, aliás,
simplificada, mas valorizada pelas silhuetas simpáticas das casas, que lembram,
corretamente, uma cidade italiana. A trilha sonora de Marcos Chaves é alegre e
casou-se bem com os versos do próprio Marcelo Adams, nem sempre colocada em
tonalidades que facilitassem para os atores, mas assim mesmo, bem entonada. A
coreografia de Larissa Sanguiné levou à leveza de movimentos. A maquiagem, obra
da própria diretora, que tem atuado nesta tarefa em outras montagens, valorizou
muito as expressões faciais: as máscaras, sem estarem demasiadamente carregadas
e caricaturais, valorizaram as expressões fisionômicas, facilmente perceptíveis,
especialmente em relação aos dois pais.
O projeto do espetáculo evidencia maturidade, respeito pela dramaturgia e
criatividade nos mínimos detalhes, como as piscadelas da Jacinta, dirigidas
sempre para o público. A comédia tem este enorme desafio: ela não permite meio
termo. Ou a direção acerta e tudo anda bem, ou o ritmo irregular da encenação
põe tudo abaixo. Neste caso, Margarida Leoni acertou em cheio, e mesmo quando
introduz alguns cacos e busca explicitar algumas eventuais segundas intenções do
texto, não o faz com mau gosto ou fugindo ao proposto originalmente pelo
texto.
Eis, pois, um bom espetáculo: divertido, bem realizado e, sobretudo, ainda e
sempre interessante para o público contemporâneo."
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