Tartufo é das comédias mais conhecidas de Molière, um dos maiores dramaturgos da história, e que encontrou o seu meio de expressão ideal não nos dogmas classicistas do período barroco francês (de autores como Racine e Corneille), mas na comédia de orientação muitas vezes farsesca (O médico à força, As artimanhas de Scapino). Ao lado dessas comédias mais físicas, que se impõem pela rocambolização do enredo (e com inspiração mais evidente no "teatro puro" da Commedia dell'arte), Molière escreveu comédias de caracteres (O avarento, O doente imaginário) e comédias de crítica de costumes (O burguês fidalgo, As preciosas ridículas). Esses exemplos não esgotam a volumosa produção de Molière, que ainda escreveu comédias pouco cômicas, como O misantropo, comédias-bailado, etc. Até tragédias o francês se atreveu a escrever, com esperado fracasso.
Sendo uma sátira à religião, Tartufo coloca em questão a aparentemente inexplicável ingenuidade a que são levados os "crentes", certos de que o reino dos céus estará aberto a eles, em medida proporcional à quantidade de dinheiro que doam como dízimo. Há, evidentemente, momentos altamente cômicos, mas que fogem à farsa pura que Molière utilizou em vários momentos em outras peças. Em determinadas cenas do Tartufo, Poquelin mostra todo seu pendor para as situações mais desatinadas, típicas da farsa, mas de forma nenhuma pode-se dizer que a peça seja uma farsa.
O Grupo Farsa, que no programa da peça escreve ser "um dos poucos grupos do país a se dedicar ao estudo e apresentação da farsa", coloca em cena pela segunda vez um texto de Molière (da primeira vez, em 2009, foi O avarento), e novamente elege como dramaturgia não uma farsa, mas uma comédia de caracteres. Isso não é uma crítica, apenas uma constatação e uma "alforria" para o grupo: por se chamar Farsa, o grupo não precisa montar apenas farsas para ser coerente. Um nome é apenas um nome, e há muita dramaturgia boa por aí, inclusive comédias, que prescindem do rótulo "farsa" para serem engraçadas.
Bem, dito isso, é preciso também acrescentar que um espetáculo não é apenas um texto encenado. É possível construir uma farsa com um texto que não o seja. E o caminho do grupo dirigido por Gilberto Fonseca vai um pouco por aí. O texto em si do Tartufo não se encaixa no gênero farsa, e até não é engraçado em vários momentos, mas conforme sua encenação, essa característica se acentua: a postura de alguns dos atores, como Marcos Chaves e Tefa Polidoro remetem à estilização de inspiração italiana. Até mesmo as irreverentes quebras metalinguísticas que ocorrem durante a peça poderiam dar um outro sentido à palavra farsa: "somos atores que fingem ser algo que não são; somos farsantes e escancaramos isso para vocês, algumas vezes".
A encenação do Grupo Farsa é curta, levando em consideração a extensão do texto original de Molière: cerca de 1 hora. O texto na íntegra certamente não levaria menos de 2 horas para ser levado à cena. Ou seja, muitos e profundos cortes foram feitos no texto de cinco atos. Personagens importantes não foram cortadas, apenas uma criadinha, Flipotte, que em nada acrescenta à trama. O que acontece sim é a aceleração do desenvolvimento da ação, que se dá de forma velocíssima, já que as chamadas "gorduras" do texto original foram lipo-aspiradas até o osso, deixando-se nas mãos da trilha sonora algumas informações que originalmente se davam através de longas falas. Esse expediente já fôra usado com sucesso em O avarento, e retorna aqui com semelhante eficácia. Digo "semelhante" porque nem todas as intervenções musicais parecem 100% resolvidas narrativamente.
Há coerência na encenação em não tornar o que se vê tão cômico quanto em O avarento. Isso porque Tartufo é um texto mais sombrio, que fala de coisas mais sérias. Nesse sentido, a opção por cores como o preto e o branco nos figurinos e a sobriedade da cenografia (apenas uma mesa e duas cadeiras, que entram em momentos breves e bastante específicos) demonstra que o Grupo Farsa está se "transformando": deixando de ser apenas um coletivo que monta farsas. Talvez seja precipitado de minha parte afirmar isso: veremos na anunciada montagem de O doente imaginário para onde vai a inspiração do grupo. Se em direção à comédia à italiana (que dava mais as caras em O avarento) ou ao quase naturalismo de algumas composições de ator em Tartufo (Carlos Azevedo, Lúcia Bendati e Vinícius Meneguzzi).
Agradeço, Marcelo, por dividir conosco sua percepção. Alguns pontos ressaltados são debatidos no grupo, e certamente continuaremos em conversações constantes, tanto com os artistas envolvidos nas montagens da trilogia, quanto com colegas e amigos que nos auxiliam com suas colocações vistas e ouvidas da plateia. O grupo experimentou outros caminhos no processo de criação de Tartufo, e creio que conseguimos alguns resultados positivos que nos motivam em diferentes partes da peça, e pontos que nos fazem aumentar a discussão na elaboração de outros momentos para que sigamos amadurecendo o espetáculo. Da trilha proposta, o desafio de mesclar as vozes e instrumentos "plugados" fora uma dificuldade a mais, porém nos instigou enquanto atores: sair do confortável, estudar execuções instrumentais diversas e sua colaboração na encenação. Como diretor musical observo uma evolução gradual, apresentação por apresentação, mas já me sinto muito satisfeito ao receber de meus colegas de cena a entrega e a busca pelo desafio/superação... Em alguns momentos, tais ganhos me emocionam e é nessa mescla que Tartufo do Grupo Farsa tem, a meu ver, um de seus méritos: o estudo da musicalidade do espetáculo como um todo, não apenas nas músicas cênicas. Obrigado por colaborar conosco.
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