Paul Auster, ao lado de romances, memórias e roteiros para cinema, durante os anos de 1976 e 1977 escreveu três peças curtas, reunidas no livro
Da mão para a boca: crônica de um fracasso inicial (Companhia das Letras, 1997). Traduzidas como
O gordo e o magro vão para o céu,
Esconde-esconde e
Blecautes, percebe-se sem a menor dúvida a inspiração absoluta para esses textos: o teatro de Samuel Beckett. No ano passado, o Grupo In.co.mo.de-te, sob a direção de Nelson Diniz e Liane Venturella, encenou o primeiro desses textos, o mais longo, uma espécie de paródia-homenagem a Stan Laurel e Oliver Hardy, cuja evidente referência é
Esperando Godot, do autor irlandês.
Desta vez,
Esconde-esconde virou
DentroFora, e o grupo agora inverte as funções: no palco, Nelson e Liane dirigidos por Carlos Ramiro Fensterseifer, que interpretara o Magro na peça anterior. Se no texto de Auster ele não nomeia suas duas personagens, chamando-os apenas de Homem e Mulher, a montagem porto-alegrense os batiza como Marie e Jimmy, localizando de alguma forma a ação em algum país de língua inglesa.
No programa, é informado que
DentroFora é inspirado em
Dias felizes, de Beckett, mas essa inspiração, evidentemente, provém de várias outras peças e narrativas de Beckett. Explico: é comum a temática da imobilidade em sua obra. Apenas como exemplo, cito os romances do pós-guerra:
Molloy e
O inominável apresentam protagonistas imobilizados: o primeiro, na cama de sua mãe; o segundo, um ser indefinido, dentro de uma espécie de tonel, de onde veem-se apenas sua cabeça e ombros. Entre as peças, também pode-se dar como exemplo
Play, em que três figuras, apenas com a cabeça para fora, permanecem dentro de grandes urnas.
A montagem de
DentroFora tem como grande mérito o excelente trabalho dos atores, mas que, para mim, tem seu ápice na atuação de Liane Venturella, realmente ótima como Marie. Era difícil, para mim, tirar os olhos dela durante a peça, com aproximadamente 40 minutos. As caracterizações, de alguma forma, me remeteram a
Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll.
É um trabalho fundamentalmente de atuação, já que, ao seguir muitas das rubricas de Auster (e, por outro lado, deixando de executar algumas delas, como por exemplo a exigência de que as caixas onde permanecem as personagens deveriam ser recobertas por cortinas "de veludo escuro", e pedindo que essas mesmas cortinas deveriam ser abertas e fechadas dezenas de vezes durante a peça, com "um som áspero, duro, característico"), a direção abstém-se de criar algo que avance em relação ao texto. É o "mal" de quem encena Beckett, já que ele explicitava, com riqueza de detalhes, em longas rubricas, como deveriam ser montados seus textos: o diretor ou fica amarrado ou joga tudo para o alto.
Carlos Ramiro, no entanto, foi sábio ao não inventar muita coisa, deixando que Nelson e Liane deitassem e rolassem com o saboroso texto. É um espetáculo que deve ser visto por todos que gostam de teatro, apesar de saber que não será, infelizmente, um estouro de público, porque não é uma encenação com muitos atrativos para o público médio de Porto Alegre. Quase estática e centrada na palavra, exige uma
suspension of desbelief extra, já que é necessário embarcar na convenção e na metáfora apresentada para fruir com toda profundidade.
Parabéns ao grupo, pela coragem de nos apresentar uma dramaturgia e uma estética pouco comuns em Porto Alegre, mas altamente qualificadas e muito bem executadas.