Uma questão que me interessa é: há real necessidade de tomar o texto dramático como ponto de partida e guia para a fruição de um espetáculo teatral? Outra maneira de lançar essa questão: por que boa parte dos que escrevem sobre teatro baseiam seus comentários em desdobramentos e especulações acerca do que o texto dramático traz em forma de palavras e sugestões de imagens que podem ser criadas a partir delas? Por que tomar o texto dramático como paradigma para uma encenação, respeitando (será que a palavra respeito se aplica?, e se se aplica, o que significa exatamente "respeito" em um contexto de criação artística?) e elegendo o autor das palavras impressas como o criador principal em uma encenação? Por acaso não sabemos (a maioria de nós, acredito) que, há pelo menos algumas décadas, o Teatro não se sente mais obrigado a eleger um "mestre espiritual" e, como uma escritura sagrada, seguir as indicações constantes em forma de rubricas e "formas de fazer" previamente estipuladas pelo dramaturgo? Por que a criação de um único indivíduo, o autor dramático, tem mais importância do que as criações de inúmeros outros artistas que compõem a equipe de um espetáculo cênico? Por que, ao modificar, incrementar, questionar, dialetizar, etc., um discurso no papel, os artistas da cena são apontados como traidores, ignorantes (por não terem "entendido" o texto?), desvirtuadores, entre outras denominações?
Ao assistir a um espetáculo teatral, tenho, como espectador, duas possibilidades: a de conhecer previamente o texto dramático, e a de não conhecer previamente o texto dramático. Uma vez conhecendo o texto, posso ter duas atitudes: a de ficar constatando, o tempo todo, a maneira como a encenação aproveitou o texto (na íntegra, com cortes, com modificações internas, provocando fissuras, rasuras, etc.), e me colocar como juiz do que é "respeitoso" ao dramaturgo, erguendo um muro entre mim e as cocriações de todos os outros artistas, considerando-as apenas como consequências necessárias da escritura "sagrada" do autor dramático; ou a outra atitude, a de dar ao texto dramático o seu devido lugar, que é o de um dos elementos de uma encenação, não o mais importante, não o do qual deriva todo o resto, não o guia infalível para a concepção cênica, e, desta forma, dar atenção ao que acontece na fricção entre esse texto dramático e os demais elementos vivos e plásticos da encenação. Que transformações se produzem nessas relações, quais novas possibilidades se criam nessa espécie de reação química que ocorre?
O espectador de um espetáculo teatral não é um crítico literário, embora ele possa agir como um, já que cada pessoa sentada na plateia tem o direito de "ler" a criação cênica que se lhe apresenta a partir do seu próprio horizonte de expectativa. Ou seja: eu leio com os olhos que tenho. Se sofro de miopia ou estigmatismo intelectual, isso influirá diretamente na minha recepção. Se escolho (ou, por outro lado, se não tenho outra saída, pois "nasci assim") eleger um ponto de observação, a partir do qual construo minha recepção ao que me é oferecido, estou, indubitavelmente, abrindo mão, conscientemente ou não, de outros inúmeros pontos de vista. Isso em si não é tão ruim, pois todos somos limitados como seres humanos, uns mais, outros menos, para algumas coisas, para outras coisas. O que me parece mais complexo, entretanto, na recepção de um espetáculo teatral, é que, justamente, ele é complexo, por ser constituído por uma série de contribuições artísticas. Não é como a literatura, por exemplo, que resulta do trabalho de um único autor, que detém, oniscientemente, os rumos da forma narrativa (embora jamais poderá controlar a maneira como essa forma será recebida pelos leitores). Lá vai: não se pode ver teatro unicamente com ferramentas da literatura, é preciso outras ferramentas, ou pelo menos, estar aberto para a experiência cênica que não é, de forma alguma, um texto dramático transposto, apenas.
Acaso me informo, quando vou ao teatro, das "características" de cada um dos atores que estão sobre o palco? Seria ridículo procurar saber qual é o peso, a altura, a capacidade pulmonar, a extensão vocal, o alongamento e a capacidade de atenção de cada ator, antes de vê-lo atuando, para depois poder dar um veredito de quanto de seu "potencial" ele empregou em cena. Se esse ator foi subutilizado, se ele não deu tudo de si, se na noite anterior ele bebeu demais ou brigou com seu amor, tudo isso eu teria como um critério de comparação para utilizar na apreciação do espetáculo? Se essa possibilidade é estúpida, então por que é imprescindível saber os antecedentes e a genealogia do texto?
Mais um argumento, que para mim é irrefutável: o teatro é arte viva, e, assim como a dança, se constrói sobre o corpo vivo do performer. Essa é a pedra fundamental da arte teatral, por mais que em torno dela se amalgamem infindáveis outros elementos. Não há estrutura sem esqueleto, e o ator é o esqueleto do teatro. O movimento, a ação, a presença viva dos atores são (que aceitem isso os "literaturófilos") o que há de mais característico no teatro. Por mais fascinante e rico que seja um texto dramático bem construído, que auxilie os atores a mostrarem seres humanos agindo sobre um palco, a dramaturgia não pode ser mais do que é: justamente um auxiliar para o que realmente é o coração e a mente do teatro, o ator. Literatura no papel serve para ser lida, relida, retornando páginas e constatando minúcias possíveis apenas desta forma. O texto dramático sobre a cena é ouvido apenas uma única vez, o que denota sua importância dentro da estrutura espetacular. Não se podem colocar todas as fichas apenas no entendimento lógico da "historinha" que está sendo contada sobre o palco através das palavras do dramaturgo. Várias outras histórias são contadas, simultaneamente: há a dramaturgia do ator, a dramaturgia da luz, a dramaturgia do som, entre outras. Um espetáculo é uma sobreposição de dramaturgias, que seguem muitas vezes indiferenciadas, ou mixadas, não é inteligente eleger apenas uma delas como a guia fundamental. Mas se eu elegesse uma, com certeza não seria o drama como forma necessariamente impositiva. E digo isso não como um detrator da dramaturgia, mas como alguém que estudou o drama e a literatura em geral em nível de pós-graduação, que ensina literatura dramática na universidade, e que construiu todos os espetáculos da minha Cia Teatro ao Quadrado a partir de textos dramatúrgicos. Entretanto, nunca deixei de entender que fazer teatro não é só montar um texto.
Assisti ao espetáculo As trevas ridículas que, segundo o programa do espetáculo, foi "baseado na peça radiofônica" do alemão Wolfram Lotz. Estreado em maio de 2017, e integrando o Projeto Transit, no qual dois diretores de Porto Alegre foram convidados para encenar um mesmo texto, sob a idealização do Goethe-Institut, esta versão que assisti foi encenada por Alexandre Dill, com produção do Grupo Jogo (a outra versão foi batizada de Nas sombras do coração, com encenação de Camilo de Lélis). Acompanhei, em meados do ano passado, uma polêmica que se criou a respeito dessas encenações, e a partir da qual várias manifestações, às vezes agressivas, se tornaram públicas. Uma delas, se não me falha a memória, dizia respeito à escolha que uma encenação faz de explicitar, desta ou daquela maneira, o que um texto dramático traz em seu bojo. Ou seja: transformar palavras em imagens, que em última análise é uma das funções do teatro, desde sempre (há incontáveis maneiras de se fazer isso, evidentemente). E essa escolha que a encenação faz, de transformar quais palavras em quais imagens, me parece ser justamente o fundamento do Projeto Transit, caso contrário não teria sentido convidar dois encenadores para dirigirem o mesmo texto. Já era esperado que cada uma das equipes abordasse o texto de Lotz da maneira que considerasse "a sua melhor". E, no caso do projeto do Goethe em questão, foi fornecido o estímulo do texto radiofônico, como poderia ter sido qualquer outro: uma sinfonia, uma escultura, uma tela, um poema, uma árvore... A escolha de um texto escrito como estímulo se justifica porque traz uma narrativa mais facilmente identificável, o que, levando em consideração que o teatro é reconhecido como uma arte que faz uso da narrativa, cenicamente, torna a transposição entre linguagens, teoricamente, menos conturbada.
O Grupo Jogo me surpreendeu com o resultado de As trevas ridículas, porque em minha opinião havia muitas dificuldades na transposição de uma peça radiofônica alemã que traz temas como colonialismo e pirataria. As obras primas, literária de Joseph Conrad (O coração das trevas), e cinematográfica de Francis Ford Coppola (Apocalipse now), que serviram como parâmetros/balizas para que o autor Wolfram Lotz desse luz a uma terceira coisa chamada Die Lächerliche Finsternis, poderiam resultar demasiadamente desafiadoras para que ainda uma outra possibilidade, desta vez cênica, criasse corpo. Minha surpresa, então, se deu no sentido de que fiquei bem impactado com o que vi sobre o palco do Teatro do Goethe.
A encenação de Alexandre Dill teve êxito em criar um outro universo, este, ficcional, no qual se movem as figuras corporalizadas pelos atores. E tal feito se dá, durante o transcorrer do espetáculo, não apenas como fruto da bem resolvida cenografia de Reynaldo Netto (minha leitura foi a de identificar a grande caixa que domina o palco com um contêiner, desses que os grandes navios de carga transportam pelos mares), mas em iguais proporções com o belo desenho de luz de Lucca Simas, que cria as trevas constantes que dão título ao espetáculo, utilizando dispositivos luminosos variados e muito eficazes; os figurinos de Manu Menezes, totalmente adequados à proposta da encenação; a direção musical de Bibiana Petek, que se aproxima do cinematográfico pela habilidade em construir "camas sonoras" para as cenas; e, sem dúvida, o trabalho dos atores.
Os cinco atores estão, felizmente, conectados com o estranhamento que o conjunto de estímulos sonoros e visuais promovem na percepção do espectador. Há algo levemente anuviado que ocorre, uma ironia, um sarcasmo tênue como um tecido voal, que torna atraente a atuação de todos. O bom trabalho dos atores, entre os quais incluo Vicente Vargas, Lucas Prado e Guilherme Conrad, ressalta Frederico Vittola e Gustavo Susin como duas formas quase opostas de atuação, que contribuem para o estranhamento positivo que ressaltei. Gustavo constrói seu principal momento no espetáculo - um monólogo que dura cerca de 20 minutos, logo no começo da encenação - em uma atuação vinculada ao que Josette Féral chama de "teatro performativo", ou seja, uma construção de corpo-voz que ultrapassa a composição física de uma personagem, no sentido de que apresenta uma diversidade de posturas e ações que envolvem objetos como um microfone de pedestal, uma folha de zinco (?) e um refletor. A alternância de planos espaciais nos quais se desenvolve o trabalho de Gustavo sugere por vezes uma animalidade que se adequa à crítica que é feita ao tratamento do pirata somali que lhe cabe atuar. A intensidade física que ele alcança, realçada pela dificuldade e pelo incômodo com os quais tem que lidar (como o calor excessivo provocado pelo refletor que ele segura próximo ao rosto) torna sua atuação viva, corporificando paralelos entre a figura ficcional e o ator.
Frederico Vittola, inversamente, compõe hábil e detalhadamente sua personagem, a de um militar do exército alemão em uma busca cheia de percalços no Afeganistão. Frederico tem sutileza e controle do tempo de sua atuação, inserindo pequenas ações que dão total credibilidade à personagem que criou. Há muito senso de humor em seu trabalho, e ele se torna o eixo em torno do qual os outros atores constroem suas atuações.
Poderia-se pensar que, em um mesmo espetáculo, soaria estranha a junção de duas formas de atuar tão contrastantes, como as de Gustavo e Frederico - isso se não estivéssemos em 2018, momento em que a ideia de unidade dramática já perdeu muito de seu sentido e de sua representatividade no cenário teatral. A tal da unidade não é alcançada pela uniformidade dos elementos, é muito mais ampla do que isso. Unidade, em minha compreensão, tem a ver com a verossimilhança que a proposta cênica apresenta, sendo que verossímil não tem ligação necessária com o real e o realista, mas com o que é proposto pela/para a obra. Talvez a palavra coerência faça mais sentido aqui, mas sem esquecer o conceito de "coerência incoerente" trazido por Eugenio Barba.
As trevas ridículas não é um espetáculo de excessos, atravessa as quase duas horas de sua duração em um ritmo constante, como o barco que desce o rio. Esse ritmo é modificado às vezes, o que na maioria das ocasiões funciona muito bem como uma transição para outra cena. Há uma única interrupção que considero não necessária para o espetáculo como um todo, que é justamente a maior delas, com o intervalo de 15 minutos entre o primeiro e o segundo ato, quando o engenhoso cenário é reconfigurado, criando novas áreas de atuação. Fica lindo, isso é verdade, mas quebra um pouco o andamento que vinha sendo proposto, além de que essa transformação ocorre já próxima ao final da encenação, não sendo tão aproveitadas as possibilidades cenográficas como poderiam.
Acompanho os trabalhos do Grupo Jogo, e dentre os que tive a oportunidade de assistir este me parece o que encontra um melhor equilíbrio entre o desejo de fazer a diferença em um trabalho calcado na fisicalidade e na intensidade emocional, e a sutileza e domínio dos elementos cênicos. Fiquei bem satisfeito!