Marcelo Ádams

Marcelo Ádams

sábado, 30 de julho de 2016

A MECÂNICA DO AMOR

No Hamlet de William Shakespeare, em determinado momento da cena II do ato II, ocorre uma situação rica em possibilidades de prospecção de camadas de significados. Trata-se da cena em que Polônio relata ao casal real Cláudio e Gertrudes acerca do estado mental do príncipe Hamlet, que - Polônio assim considera - está fragilizado pelo amor que o jovem herdeiro da coroa dinamarquesa dedica à doce Ofélia, justamente a filha mais jovem do relatante. Para demonstrar sua tese, Polônio vale-se de uma carta escrita por Hamlet a Ofélia, e que se encontra em seu poder. Sabemos assim, não a partir da ação dramática, mas, pode-se dizer, através da narrativa épica, dos sentimentos de Hamlet da forma mais precisa possível - ou seja, por suas próprias palavras, registradas na missiva. Então Polônio lê em voz alta:
Duvide que a estrela é ardente,
Duvide que o sol levanta,
Duvide que o sincero mente,
Mas não que meu amor é franco.
Oh, querida Ofélia, não sou bom em versos. Não tenho arte para dar forma aos meus gemidos. Mas que te amo tanto, mas tanto mesmo, acredite nisso. Adeus. Teu para a eternidade, caríssima senhora, enquanto essa máquina lhe pertencer, Hamlet.

O que chama atenção nessa breve declaração de amor, que será, ainda na mesma cena II, totalmente contraditada com a violência pela qual Hamlet expurga Ofélia, é o uso da metáfora da máquina para falar do corpo humano, essa "máquina desejante", como Deleuze a chamará no século XX. Também vale a pena mencionar que o filósofo francês René Descartes trará a ideia do corpo-máquina, porém apenas no século XVII, mais de um século após o belo achado imagético de Shakespeare. Finalmente, nos anos 1970, o alemão Heiner Müller batizará de Hamletmaschine um de seus mais conhecidos textos.
Quando ouvi pela primeira vez o título do novo espetáculo escrito e dirigido por Júlio Conte, não me ocorreu que a menção à mecânica se relacionava mais explicitamente a uma oficina mecânica, e não às engrenagens da existência. Ainda mais quando associada a mecânica ao amor, lembrar do Hamlet fez para mim todo o sentido. Então, no decorrer do espetáculo que assisti na estreia, fui tentando juntar a minha expectativa prévia com o que eu via sobre o palco, e descobri que é possível fazer aproximações entre a máquina a que se referia Hamlet com a mecânica do Júlio Conte.
Em destaque está a relação entre os dois mecânicos vividos por Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio. Uma relação de amizade, em primeiro lugar, de coleguismo na profissão, em seguida, e, finalmente, uma relação de poder, já que um é "chefe" do outro. O chefe/dono da oficina - batizada, um tanto bizarramente de "Mecânica do amor" - demonstra ser o prático da oficina, aquele que domina a tecnologia através de seu laptop da Apple. Seu empregado é o clássico rústico, quase estúpido em sua total inaptidão para apertar os botões do computador. No entanto, demonstra uma maior "inteligência emocional", mesmo que enviesada e seguidamente machista. Nada a criticar, já que existem homens assim, e o que a dramaturgia faz é mostrar isso. Ambos, patrão e empregado, passam a maior parte do tempo "enchendo linguiça", sem "colocar a mão na massa", ou seja, mais conversam e trocam impressões sobre o mundo do que são produtivos no trabalho. E quando me refiro à visão de mundo que ambos projetam, explicita-se mais exatamente do que as duas personagens são reféns: de uma perspectiva sexista, em que na maior parte do tempo se colocam "eles" em oposição a "elas", como duas espécies pouco semelhantes, com o aditivo de que "elas" devem ser decifradas, tal a separação que se constrói entre os dois gêneros. Passo a compreender a ideia da mecânica do título mais no sentido de engrenagem shakespeariana. O amor como uma engrenagem dentro de uma outra engrenagem (o corpo humano), dentro de uma outra engrenagem (o papel social de cada um de nós). Reféns são os dois mecânicos dentro da engrenagem masculina, que normatiza um comportamento, com seus códigos bem conhecidos pelos indivíduos do sexo masculino; códigos que passam pela ojeriza/deboche da homossexualidade, através da afirmação da masculinidade pelo tamanho do pênis e pela frequência com que se faz sexo: é preciso provar reiteradamente o pertencimento à irmandade do falo (ereto!) com essas afirmações subliminares de macheza. Os dois mecânicos são máquinas, não de amar, mas de reproduzir; "os homens que copiavam", parafraseando o filme de Jorge Furtado, que copiavam comportamentos estabelecidos, como o do velho Caneta, metalinguisticamente representado por uma fotografia do próprio Júlio Conte, em uma cameo role à la Hitchcock. Aliás, é perfeita essa aparição do Júlio justamente como o patriarca, o macho alfa do macharedo, para reforçar minha hipótese.
Realmente o título do espetáculo não contempla tudo que ele entrega. Não se fala quase de amor, a menos que se considere a amizade como um tipo de amor, mas neste caso seria mais adequado batizar de A mecânica da amizade. A entrada de outras duas personagens, interpretadas pelos mesmos atores, em uma subtrama que trata de delação premiada, corrupção e traição de confiança, vem como um contraponto mais denso e um pouco nebuloso da anterior situação predominante. E esse depositar de confiança no discernimento dos espectadores é, novamente, apontado pela metalinguagem, quando Fabrizio e Lucas, os atores, questionam se o público vai entender o que está acontecendo. Aparentemente sim, entendemos.
Todas essas observações são integrantes da minha satisfação, em resumo, de ter assistido ao espetáculo. Fiquei especialmente contente pela declaração de Júlio em defesa da arte cênica como saída possível para um mundo melhor, pelo organicíssimo jogo entre os atores, e pelo trabalho de atuação de Fabrizio Gorziza. Não posso deixar de referir que Fabrizio começou fazendo teatro, há mais de 10 anos, em uma oficina da Cia Teatro ao Quadrado com direção da Margarida Peixoto e texto meu. Também foi por nosso intermédio que Fabrizio fez seu primeiro trabalho profissional em teatro, justamente o Hamlet dirigido por Luciano Alabarse, em 2006. Depois, fui colega de palco de Fabrizio em vários espetáculos, e agora, vendo um ator maduro, cheio de recursos, inteligente cenicamente, fico orgulhoso e na expectativa de voos ainda mais altos. Sobre a encenação do Júlio, me alegra essa mescla entre um teatro mais clássico, aristotélico, com piscadelas pós dramáticas, que tornam a assistência prazerosa e vívida. Soluções simples e criativas, um investimento claro no trabalho dos atores, e uma vontade de falar do mundo atual, mesmo que essa escolha ponha em risco algum tipo de "unidade" dramática. Correr riscos é assim. Fazer teatro é correr riscos. E fazer teatro sem incentivos, a não ser o auto incentivo, que nos faz acreditar que arte é importante, e que precisamos exercê-la para sentirmos "que estamos de volta". Júlio não tinha saído, sempre esteve aqui, no bloco daqueles que constroem e ajudaram a construir a história do teatro em Porto Alegre.


sexta-feira, 29 de julho de 2016

DESCIDOS

Uma das imagens preferidas da iconografia dos séculos XV ao XVII era a descida de Cristo da cruz, após a crucificação. Por ser uma época em que, para sustentar-se, os artistas necessitavam do mecenato de nobres e da Igreja, eram frequentes e comuns os retratos de autoridades eclesiásticas e da aristocracia, que podia pagar pelo luxo de verem-se registrados em tela pela sensibilidade dos maiores artistas daquele tempo. Pelo mesmo motivo, contratavam-se esses artistas para pintar ou esculpir cenas retiradas do velho e do novo testamento, para decorar capelas, nichos ou aposentos dos contratantes. É lindo comparar algumas dessas cenas nas versões de diferentes artistas, como a Anunciação, a Santa Ceia, ou a já citada descida da cruz. Para efeito de estudo de volumes, linhas e texturas, coloco aqui uma inusitada comparação entre algumas descidas da cruz e uma fotografia clicada por Adriano Arantos, talentoso fotógrafo e músico que nos acompanhou por Maceió e João Pessoa em nossa recente turnê de Os homens do triângulo rosa pelo Nordeste brasileiro, que contou com o patrocínio da Petrobras. Adriano captou um lindo momento de expressividade dos atores, que associo às descidas da cruz da tradição pictórica ocidental.
 Adriano Arantos, Os homens do triângulo rosa, 2016

Antônio Nogueira, Descida da cruz, 1564

Rogier van der Weyden, Deposição da cruz, 1435-38

Rubens, A deposição da cruz, 1610-11

Giorgio Vasari, A deposição da cruz, 1540

sábado, 2 de julho de 2016

OS DOIS GÊMEOS VENEZIANOS

"Más vale trocar pracer por dolores que estar sin amores". Este é a frase inicial da canção do espanhol Juan del Encina, escrita provavelmente entre o final do século XV e o começo do XVI, e que é apresentada de forma belíssima em um coro de cinco vozes em determinado momento da encenação de Suzi Martinez de Os dois gêmeos venezianos. A montagem da Trupe Giramundo para o texto do italiano Carlo Goldoni, escrito em 1747 ou 1750, mostra que não há nenhum empecilho em misturar línguas e épocas, ao contrário: a mestiçagem enriquece a raça.
Goldoni é considerado um dos grandes autores da língua italiana, ao lado de Dante, Boccaccio, Maquiavel, Fo, Pirandello, e por aí vai. Sua biografia é ligada irremediavelmente à commedia dell'arte, gênero que cultivou e negou, alternadamente, durante toda sua vida. Se nas primeiras décadas do século XVIII, paralelamente aos seus estudos em Direito (feitos para agradar ao pai), Goldoni escreveu canovacci (roteiros arejados sobre os quais os atores improvisavam e compunham a cena no calor da representação) para servirem de mote aos comediantes dell'arte, chegou um momento em que não mais o satisfizeram as características próprias do gênero, tais como a estilização e a tipificação sugeridas pelo uso das máscaras, a intriga convencional com figuras bem divididas entre as categorias da commedia dell'arte, como os velhos, os enamorados e os criados, e até mesmo as práticas recorrentes das intrigas, como o fato dos criados surrarem os amos para extrair o riso. Goldoni passou a considerar que a nova arte dramática italiana deveria passar pela arguta observação dos costumes da época, para que, de forma mais "realista", chegasse a um reflexo preciso do mundo em que vivia. É curioso comparar essa ambição de Goldoni com o que Molière fizera várias décadas antes na França, quando, ao eleger tipos característicos para suas críticas, como o avarento, o hipocondríaco, o médico charlatão e o pseudo-intelectual, os fazia cercar de figuras de evidente inspiração "commediadell'arteana", como serviçais, criados, jovens enamorados e pais turrões. E Molière conseguiu essa proeza sendo ao mesmo tempo socialmente crítico e convencional.
Quando Goldoni escreveu sua primeira peça "completa", quer dizer, uma em que cada palavra seria pronunciada pelos atores, sem espaço para o improviso textual, abriu-se uma possibilidade rica: fixar, pela primeira vez em textos mais complexos, as máscaras da commedia dell'arte, que anteriormente só viviam de forma fragmentária nos canovacci. O mais conhecido exemplo dessa vertente, e também o mais famoso texto de Goldoni, é Arlequim, servidor de dois amos, de 1745, além do já referido Os dois gêmeos venezianos. Como a intenção aqui não é biografar Goldoni, retorno ao motivo deste escrito: a encenação desta obra, realizada de forma bem sucedida em Porto Alegre, e pelo que sei, pela primeira vez aqui.
Utilizando o bom e velho artifício dos gêmeos que confundem e são confundidos para arrancar o riso, empregado desde a Roma antiga por Plauto em Os menecmos, ou por Shakespeare em A comédia dos erros, são apresentadas conhecidas figuras da comédia à italiana, entre elas Arlequim, Doutor, Capitão e Colombina. Outras, como Rosaura, Beatriz e Fabrício, são filhas do gênero, alguns dentre os tantos nomes que os enamorados recebem nessa estrutura convencionalizada. Portanto, dramaturgicamente, há pouca novidade e ineditismo na abordagem da trama; exceção mencionável é a morte de um dos mocinhos e do vilão, antecedendo o final feliz: há aqui, efetivamente, um dado novo nas edulcoradas tramas românticas associadas ao gênero. A Trupe Giramundo deita, rola, pinta, borda, canta, dança e chega perto de comover ao espectador mais atento ao tema que, em minha opinião, subjaz à alegre e descompromissada encenação: o teatro em si.
O teatro do século XXI, assim como o de outros momentos do século anterior, se coloca frequentemente a obrigação de tratar de assuntos e temas ferozes, atuais, socialmente relevantes, denunciadores do estado das coisas, críticos, etc. Nada mais necessário, afinal, quem foi que disse que o teatro efetua [pode efetuar] a crônica de seu tempo? Já que cada espetáculo é arte viva que só acontece uma vez a cada vez, e perante aqueles poucos que ali estiveram, o teatro se mostra adequado para retratar a passagem das coisas: do tempo, dos costumes, das ideias. A ânsia que sofremos de fazer a diferença, de mudar o que não concordamos, de melhorar o que está ruim, leva os teatreiros a buscarem o incêndio dos assuntos necessários: concordo com isso, já que considero essa uma das funções do artista. Mas: espetáculos como Os dois gêmeos venezianos percorrem um outro caminho, belo e importante: ao fazer esse tipo de teatro, tematiza o próprio ofício, mesmo que não explicitamente. Poderia eu diferentemente encarar essa declaração de fidelidade e devoção ao teatro, representado pelo extremo preparo dos atores desse elenco, que se desdobram em músicos e contrarregras? Poderia eu deixar de me sentir cúmplice das dificuldades comuns à produção de uma encenação ambiciosa como esta - ambiciosa no melhor sentido possível, aquele que traz o significado de superação de obstáculos financeiros, artísticos e outros tantos? Poderia eu descrer da vontade entrevista nos corpos e vozes de cada um sobre o palco, garra envolta talvez não nos melhores e mais caros tecidos ou nos materiais mais reluzentes, mas em simples algodão, que absorve o suor que todos derramam para nos divertir? O trabalho de atuação de cada um cuidadosamente composto, ensaiado, articulado, medido: prova de amor. A alegria que vai chegando aos poucos aos atores: no início ainda um pouco frios, mas que vão se aquecendo progressivamente e puxando os olhares e a atenção para tudo que fazem sobre o palco, e quando me dou conta, tudo ferve. Guilherme Ferrêra, Henrique Gonçalves, Juliana Barros, Luciano Pieper, Marlise Damin, Paulo Brasil e Suzi Martinez encontram, cada qual em sua máscara, a abordagem precisa para tornar a atuação vívida e engraçada. O destaque é coletivo, pelo entendimento da linguagem escolhida, pelo toque pessoal que cada ator acrescenta à máscara que porta. Quero, ainda assim, falar do trabalho de Henrique Gonçalves, o Arlequim. Não é à toa que essa personagem tem tanto prestígio, pois ao mesmo tempo que se mostra exigente para quem se propõe a atuá-lo, o Arlequim proporciona ao seu "cavalo" uma infinita possibilidade de jogo cênico. Henrique defende muito bem sua parte, tem uma agilidade admirável, uma voz carismática e grande habilidade para criar deliciosos lazzi: é bom esse guri!
Sobre o palco e fora dele, a diretora Suzi Martinez traz com sucesso, segurança e conhecimento das convenções um espetáculo para se rever: eu mesmo escrevo este texto depois de ter assistido pela segunda vez. Se a Trupe Giramundo se dispuser a manter em repertório esse espetáculo, estou certo de que há ainda muitas alegrias no caminho.